Se a pandemia foi complicada para as bandas internacionais, o que dizer, então, da condição em que os nossos geradores de cultura (e todos os que gravitam à sua volta) se encontraram, em 2020. Eles que, vivem, quase exclusivamente dos espectáculos para seu sustento, viram-se fechados nas suas casas, alguns com muita dificuldade para se aguentarem.
Apesar de todas estas condicionantes, voltámos a ter grandes discos, tanto de consagrados como de gente nova. E, ano após ano, cada vez mais artistas da nossa praça vão trocando o inglês pelo português, num claro amor à língua lusa.
Este ano, a nossa escolha recaiu sobre estes 20, em 58 discos votados. Uma escolha que muito nos orgulha, dado vasto espectro de estilos que nela habitam. Vamos desde as influências africanas, com Dino D’Santiago, ao Jazz com Júlio Resende e os novatos Yakuza. Não esquecemos os consagrados Rodrigo Leão e Clã, mas outras vozes também aqui moram. Tristany, no hip hop, e Lina, com o seu projecto de fado alternativo a meias com produtor catalão, Raül Refree.
Podemos queixar-nos de tudo, neste ano maldito, menos da nossa produção nacional. Essa, foi incrível.
Que 2021 seja igualmente bom a nível de lançamentos mas muito superior a nível de concertos e espectáculos, pois esta “malta” merece!
Frederico Batista

20. Dino d’Santiago
KRIOLA
Não foi acidente KRIOLA ter acabado entre os melhores discos nacionais do ano. Da “Roda” ao “Kriolu”, da “Sofia” ao “Arriscar”, num ano em que tudo nos foi proibido, Dino fez-nos dançar, também nos fez viajar para paragens mais quentes, mais livres. Também nos lembrou de quando a vida era mais simples, de quando podia bastar sair para dançar, funaná ou funk como diz a já famosa t-shirt, de quando viajar era tão mais caro quanto mais simples. 2020 foi o ano em que Dino nos lembrou que, afinal, andou sempre por aí. Será esse o segredo?
19. Névoa
Towards Belief
Ao terceiro longa duração, os Névoa encontraram uma fórmula para encaixar no seu Black Metal o saxofone elegante do alemão Julius Gabriel (que já trabalhou com a London Jazz Composers Orchestra) e o trompete gritante do norueguês Arve Henriksen (que já prestou os seus serviços ao pianista soviético Misha Alperin e a David Sylvian, frontman da banda Japan). O resultado é Towards Belief, 40 minutos de improviso hipnotizante, atmosférico e caótico, entre escalas harmónicas menor da guitarra, ora distorcidas ora límpidas, embebidas nos requintes jazzísticos dos instrumentos de sopro – e com o ocasional gutural de Nuno Craveiro.
18. Capicua
Madrepérola
Em Madrepérola, Capicua apresenta-se como artista completa. Como sempre, domina a língua e as rimas, saltando com aparente fluidez entre temas sérios ou mais a brincar, conseguindo sumarizar vidas e sentimentos com os quais nos podemos relacionar com facilidade, ainda que desprovidos da acuidade verbal da artista. Em relação a Sereia Louca de 2014, o seu último disco “a solo”, parece mais confortável, depois do hype, assumindo-se completa, no domínio da sua arte. Não somos nós que vamos perguntar pelo próximo disco e vamos aproveitá-lo “porque pode ser o úlitmo!”

17. Vaiapraia
100% Carisma
A voz de Rodrigo Vaiapraia é grave e desassossegada. Para se ser livre é preciso alguma intranquilidade; e há lá coisa mais inquietante do que a verdade e o punk rock? Mas Vaiapraia não se deixa encaixotar em géneros, bailando entre a tradição e a novidade, a calma e a revolta, num corrupio de verdades desnudas que urgem ser cantadas em português. E que merecem ser gritadas, ecoadas pelas paredes vizinhas, proliferadas por lugares mais longínquos. 100% Carisma é o fruto da árvore musical que a vida ramificou e que nunca se deixou quebrar. E na mescla de sonoridades irreverentes que lá ouvimos, Vaiapraia explora a sua voz e nós exploramos a sua mente.
16. Pop Dell’arte
Transgressio Global
Transgressio Global é uma história concisa da transgressão, desde a antiguidade clássica até à Lisboa imaginada de 2084. Um disco tipicamente popdellartiano: intelectual e glam, melódico e dissonante, subversivo e camp, galgando todas as vãs fronteiras entre a alta e a baixa cultura. A voz de Peste continua pestiana, inventando sílabas sem sentido, usando a fonética como um demente brinquedo.
15. Três Tristes Tigres
Mínima Luz
Mais de 20 anos depois, os Três Tristes Tigres voltam aos discos, com uma obra densa e claustrofóbica mas também recompensadora. Encontramos aqui alguns marcos terrestres que nos indicam a familiaridade com a região TTT na sua vertente mais livre e mais exploratória. O resultado é um disco imersivo, opressivo e labiríntico. Mínima Luz faz jus ao seu nome, com as preciosas palavras lutando para nos levar adiante, no meio das camadas e dos mantras instrumentais que se vão revelando, sem pressas.
14. Rodrigo Leão
O Método
Em 2020, Rodrigo Leão fez-nos chegar O Método que, habitando território familiar do músico, traz ainda assim algumas novidades. O disco cozinha de forma extremamente bonita e elegante a electrónica, elementos clássicos e raízes da música popular portuguesa, num todo coerente e inspirador. Como é habitual na sua obra, também aqui a sua música é extremamente visual, transportando-nos para outros mundos e outras histórias. O Método é um pouco de tudo isso, um disco ambiental mas nada artificial, com cheiro a terra e a árvores. Um trabalho sereno, depurado e cheio de beleza, ideal para estes tempos conturbados.

13. Samuel Úria
Canções do Pós-Guerra
Em 2020, Samuel Úria deu-nos Canções do Pós-Guerra, um álbum em que, mais uma vez, junta os amigos de sempre em volta de belos e intrincados poemas que brincam com a língua portuguesa com uma eloquência pouco comum. A música, essa, vai desde boas malhas rock n’roll à antiga, a pedir um gingão abanar de anca, a simples e acústicas canções que falam de amor. Com mais um trabalho em que se debruça desembaraçadamente sobre temas que, sendo pessoais, ressoam em qualquer um, Samuel Úria reforça o seu já bem assente lugar como um dos mais interessantes e talentosos cantautores da nossa praça.
12. Cristina Branco
Eva
Eva é resultado de duas residências artísticas de Cristina Branco – uma em Loulé, outra no Museu de Arte Moderna de Louisiana, na Dinamarca e coloca a voz de Cristina Branco a cantar letras de vários contribuidores para o álbum. O disco é um bonito rendilhado que se apoia no fado para daí crescer e incorporar elementos pop e jazzísticos e tornar a música portuguesa bastante mais rica. Cristina Branco é um dos nomes mais internacionais que temos e percebemos bem porquê.
11. André Henriques
Cajarana
Numa altura em que vários membros de Linda Martini lançaram trabalhos a solo, o álbum de André Henriques é um olhar intimista e despido nas orquestrações, em que a letra carrega toda a música. O que salta à vista em Canjarana, é que em todo o disco as letras e histórias fluem sempre sem sair forçadas, que será o melhor elogio para quem as escreve. Com profundidade, sentido e emoção, André Henriques transporta-nos de tema em tema, até bom porto. Está na altura de o reconhecer como um dos melhores letristas em Portugal.
10. :papercutz
King Ruiner
Em King Ruiner, :papercutz estão melhor que nunca. O disco vai-se revelando aos poucos e leva-nos por um constante processo de descoberta de camadas sonoras. O projecto liderado por Bruno Miguel parece mais confortável com os ambientes electrónicos, onde o droning dos pads faz a cama aos salpicos coloridos de tonalidades refrescantes. Uma eventual timidez e receio de arriscar nos discos anteriores transparece neste trabalho, onde os ambientes extremamente bem construídos nos assaltam os ouvidos sem piedade. King Ruiner transpira novidade e inspiração, actualidade e sensibilidade.
9. Tristany
Meia Riba Kalxa
Em Meia Riba Kalxa, Tristany alonga-se nos temas (quase todos com mais de 5 minutos), sem preconceitos, compõe e canta sobre camadas rítmicas muito diferentes (mais eletrónicas, de inspiração mais africana, mais soul eletrónica — aquilo a que chamam R&B —, mais ambientais, mais exploratórias, mais trap) e mistura isso com conversas e sons de rua. Nota-se que o disco foi construído com tempo — e partindo do hip-hop, Tristany expande-o ao infinito, misturando-o com tudo e mais alguma coisa. Sempre com intenção.
8. Clã
Véspera
Saímos de audições repetidas deste Véspera com uma opinião ambivalente. Sendo um disco inegavelmente bem feito e com classe, sentimos a falta de mais garra, mais alma e eventualmente menos calculismo. Os Clã sempre foram melhores quando viviam soltos e nos davam refrões e hinos – de amor ou não – maiores do que a vida. Véspera mostra, ainda assim, a mestria e o bom gosto do conjunto, num trabalho para ser apreciado mais com a cabeça do que com a cintura ou o coração.
7. Noiserv
Uma Palavra Começada por N
Os discos de Noiserv nunca são exatamente discos apenas. Há sempre um cuidado com o objeto em si. Forma e conteúdo conjugam-se para que algo fora do comum aconteça. A ideia orquestral, por vezes quase barroca pelo excesso de linhas sonoras, de cruzamentos de instrumentos, é a base da quase totalidade das suas composições. Em Uma Palavra Começada Por N tudo (ou quase) volta a ser assim. É um disco que convida a uma manta, uma lareira em brasa, um livro repousado no regaço, contemplação. Um álbum que ocupa espaço, que se instala aos poucos, podendo ocupar mais do que o seu lugar na estante onde o pusermos em repouso. Infiltra-se, cria raízes. Tem dimensão.
6. Filipe Sambado
Revezo
Dois anos depois de Acompanhantes de Luxo, o compositor regressa com Revezo, uma incursão com um toque de “folk portuguesa”. Inspirado por Rosalía, Sambado diz assumir uma portugalidade neste seu trabalho como exercício de estilo. Assumidamente mais pop, Sambado mostra-se confortável neste seu papel, onde assume um som tradicional e nacional, demarcando-se publicamente de nacionalismos bacocos, tomando posição de vanguarda pública, que na musical sempre esteve. Um sólido terceiro disco de um dos melhores músicos no panorama nacional.
5. Júlio Resende
Júlio Resende Fado Jazz Ensemble
O título do álbum diz quase tudo: um diálogo entre o jazz e o fado, entabulado em contexto de banda. Grande parte do encanto de Júlio Resende Fado Jazz Ensemble está na conversa atenta entre o piano de Resende e a guitarra de Bruno Chaveiro, um anunciando a melodia e o outro improvisando a resposta (num jogo de liberdade tipicamente “jazzista”). É um disco muito bonito porque o fado que há nele é sentido. Resende cresceu em Olhão, onde há uma tradição forte de fado vadio. Lembra-se, desde muito cedo, da magia desses fados castiços, pejados de sentimento. O álbum é muito mais do que um exercício formal. É a saudade da sua infância. É o destino de tudo passar…
4. Lina & Raül Refree
Lina_ Raül Refree
A junção de Lina, fadista portuguesa, e do produtor catalão Raül Refree desconstrói a herança de Amália num disco revolucionário mas respeitador. Figura da renovação do respeitabilíssimo flamenco, Refree, que já trabalhou com Rosalía, aposta agora em fazer o mesmo com o igualmente respeitado fado. Para isso, Refree e Lina atiram-se ao valioso espólio de Amália, que a fadista tem como referência maior. Mais, o disco que agora lançam não tem uma única guitarra portuguesa, assentando em teclados esparsos e discretos e em electrónicas subtis. Um trabalho profundo, frio e escuro, mas muito bonito.
3. Yakuza
AILERON
O conceito que estrutura AILERON não é típico, nem comum. Dar de caras com um álbum jazz que retrata um meio urbano, feito de noite, carros velozes, derrapagens e excessos não deixa de constituir uma experiência ‘diferente’. No entanto, tendo em conta aquilo que está a ser feito nos últimos tempos no universo jazz, não devemos ficar surpreendidos com a estética deste projeto. O disco soa a ‘estrangeiro’, e assemelha-se a uma produção obscura londrina. E isso são ótimas notícias. O que é facto é que, ao não terem escondido as suas influências, os YAKUZA habilitaram-se a montar um álbum em forma de carro supersónico, que, certamente, irá derrapar nos ouvidos das pessoas que o decidam escutar.
2. B Fachada
Rapazes e Raposas
Uma ausência prolongada desembocou num disco surpresa e trouxe de volta o mais galante bardo da nossa praça. O disco é excelente, como seria de esperar, mas é a primeira vez que Fachada não inventa novas linguagens. Do ponto de vista lírico, Fachada continua de pena afiada, mordaz como sempre, com os seus contos, fábulas e parábolas sobre mundanices como namoros e mamocas, a vida secreta dos herbívoros ou a pobreza do espírito humano. Cantando sempre na sua métrica e língua própria, sem nunca ceder à rima fácil, B Fachada prova, mais uma vez, que é o mais eloquente bardo desta geração, conjugando airosamente o tradicional e o futurista, o erudito e o popular.
1. Benjamim
Vias de Extinção
O nome continua enganador. Não se fiem nele. Benjamim já por cá anda há algum tempo e agora deu um pulo. Cresceu, mudou de rumo, avançou em direção ao passado e deve ter-se divertido à grande. Vias de Extinção pode ser curto em termos de número de faixas, mas é longo o prazer que retiramos de quase todas elas. No seu todo, o álbum é noturno, romântico, boémio até. Este é mais um triunfo de Benjamim. Saibamos ouvir o que nos propõe para que possamos retirar dele a sua beleza um tanto ou quanto fora de moda. Em “Serviço de Despertar” canta-se a palavra “arriscar”. É o que se espera de um artista, e foi isso que Benjamim nos deu. Ainda bem que assim foi.
Editor-chefe:
Frederico Batista
Editores:
Alexandre Pires, Duarte Pinto Coelho, Francisco Pereira, Tiago Freire
Redacção: Alexandre R. Malhado, Ana Baptista, Ana Catarina Tiago, Ana Lúcia Tiago, Beatriz Costa, Beatriz Negreiros, Carlos Vila-Maior Lopes, Cátia Simões, Diogo Barreto, Filipe Garcia, Francisco Marujo, Gonçalo Correia, Joana Canela, João Salazar Braga, Liliana Fidalgo, Luís Marujo, Mafalda Piteira de Barros, Miguel Moura, Pedro Primo Figueiredo, Ricardo Romano, Tiago Crispim
Fotografia e Vídeo:
Cecile Lopes, Francisco Fidalgo, Inês Silva