O conceito que estrutura AILERON não é típico, nem comum. Dar de caras com um álbum jazz que retrata um meio urbano, feito de noite, carros velozes, derrapagens e excessos não deixa de constituir uma experiência ‘diferente’. No entanto, tendo em conta aquilo que está a ser feito nos últimos tempos no universo jazz, não devemos ficar surpreendidos com a estética deste projeto.
As nossas mãos tensas, mas controladas, seguram o volante do carro com a força possível, numa altura em que sentimos o nosso pé direito a atingir a extensão máxima do acelerador. Os faróis reconhecem uma estrada acidentada, cheia de curvas e contracurvas, que, atravessando a noite escura, estende-se para lá da nossa visão, que não tem nem um segundo para descansar. É que o percurso ainda é longo, e só agora começou.
Quando o baixo e bateria de “TUNNING”, a primeira de sete faixas de AILERON, entram no interior dos nossos ouvidos, o processo de audição parece que já vai a meio. É um autêntico in media res musical; a narrativa auditiva inicia a meio da história. Claro que os YAKUZA não chegaram antes do tempo – os nossos ouvidos é que se atrasaram. A culpa é só nossa, e é por isso que, logo nos primeiros momentos de “TUNNING”, uma certa sensação de remorsos invade o nosso pensamento. Damos por nós e já estamos completamente viciados nas notas que constroem aquele início feito a gasolina, óleo… e tunning, claro. Queremos mais, sempre mais. Todos os grandes álbuns jazz, os que são feitos de ritmo e intensidade, criam em nós um desejo viciante de audição. Queremos ouvir. Não conseguimos parar de ouvir. Para sobrevivermos, temos de ouvir. Esse desejo é constante em “TUNNING”, mas não cessa aí, porque acompanha os 45 minutos totais que compõem a produção.
O conceito que estrutura AILERON não é típico, nem comum. Dar de caras com um álbum jazz que retrata um meio urbano, feito de noite, carros velozes, derrapagens e excessos não deixa de constituir uma experiência ‘diferente’. No entanto, tendo em conta aquilo que está a ser feito nos últimos tempos no universo jazz, não devemos ficar surpreendidos com a estética deste projeto. A atual mente jazzística, que foi tomada de assalto por jovens cheios de música e diferentes influências dentro de si, funciona de acordo com as seguintes palavras de ordem: experimentar, inventar e criar. Por alguma razão, ao longo dos últimos anos, temos vindo a assistir a um crescimento do dito London Jazz e ao aparecimento de uma fornada incontável de artistas que, sendo simultaneamente feitos de jazz (do puro) e de influências ‘HTTP’ oriundas da internet, pintaram de todas as cores as paredes deste estilo musical. Afonso Serro, Alexandre Moniz e André Santos fazem parte dessa amostra de músicos. Quando estão na mesma sala a fazer música ao mesmo tempo, unem-se e transformam-se nos YAKUZA. Todos têm a sua própria história no mundo da música. Afonso, o teclista, formou o conjunto Mazarin; Alexandre toca guitarra nos Galgo; e André é AFTA 3000 (onde, através do seu baixo, dá cor a composições que juntam jazz e eletrónica). É útil ter uma breve ideia do que é que estes três músicos fizeram antes de terem gerado este projeto. Desde cedo, percebemos que AILERON constitui uma tempestade perfeita, onde mares e ventos de jazz, hip-hop, rock e batidas house se cruzam. Este cruzamento deu-se apenas porque os três intervenientes já tinham vivido as suas próprias aventuras no planeta Música.
O início da segunda faixa (“AILERON, PT.1” ) é suave. Aliás, toda a faixa é suave. Esta batida iniciática chega mesmo a ser… suspeita, por ser tão calma, leve e pacífica. (De certa forma, parece que encontramos uma lost track de Miramar Confidencial, de David Bruno.) Se em “TUNNING” aceleramos a fundo, em “AILERON, PT.1” baixamos a intensidade, e contemplamos o tracejado da estrada revelado pela velocidade da máquina. Como o próprio gangue afirma, são várias as influências que comandaram o processo de criação de AILERON, contudo, as mais intensas são, indiscutivelmente, a fusão japonesa, o já referido jazz da capital inglesa e todo o universo dance. As influências house deste projeto revelam-se com maior ângulo na faixa “AILERON, PT.2”, uma clara continuação da track anterior. Tanto o início, como fim, desta faixa podiam abrir e fechar, respetivamente, qualquer pista de dança do mundo (mas especialmente o fim, que nos transporta para a golden age de um house mais simples, uniforme e, por isso, ultra dançável e vibrante).
O momento mais impressionante em AILERON é, sem dúvida, a faixa “PICHELEIRA”. Numa ação completamente inesperada, os YAKUZA fazem um drift perfeito, e a onda do álbum muda totalmente. Se até aqui tínhamos estado numa estrada japonesa feita de neons e carros coloridos e flamejantes, de repente, somos transportados para uma estrada norte-americana edificada pelo New Deal de Franklin D. Roosevelt. A entrada de “PICHELEIRA” é fenomenal, sendo digna de ser introduzida por uma verdadeira big band. (Admito que não consegui dissociar esta faixa da composição “Caravan”, de Juan Tizol e Duke Ellington, usada como tema principal do filme Whiplash.)
Em “FURTO”, o crime vem ter connosco. É aqui que o rock de AILERON ganha mais cor. Há longos acordes de guitarra (começam por volta do minuto 1:50), acompanhados por já esperados e pesados suspiros de bateria. A reta final desta faixa oferece o palco às teclas, e é dessa forma que chegamos à penúltima composição do projeto: “KATANA”. Tal como em todas as restantes faixas, há sempre um trampolim eletrónico a dar força aos ritmos e às batidas, mas, em “KATANA”, o impulso é maior, e a música salta mais alto. O minuto 5 desta produção deve ser destacado. É um dos momentos com maior clímax em AILERON, e forma breves segundos feitos de pureza e raiva, calma e agressividade, em simultâneo (características essenciais para um Samurai cumprir, com brio e honra, a sua função).
O fim do percurso chega com “ADAGIO”. Depois de alguns quilómetros, abrandamos. Deixamos tanto alcatrão, gasolina e borracha para trás. Ao longe, já conseguimos distinguir o portão da nossa garagem, e preparamo-nos para dizer adeus à noite, que já não é noite, porque a manhã já se aproximou. E com a manhã vem a luz. E o dia. E o visível. E as regras. O crime, os furtos, os excessos de velocidade e as derrapagens pertencem apenas à noite e à solidão da estrada.
A música nunca esteve tão uniforme como hoje. Os jovens da atualidade musical beneficiam da ferramenta Internet, e, através dela, dão-se ao luxo de criar projetos verdadeiramente originais e distintos, sem, no entanto, esconderem ou esquecerem as respetivas influências motoras. A Internet une, efetivamente, as pessoas e os seus gostos e, ao mesmo tempo, quebra barreiras (que anteriormente dividiam e afastavam pessoas diferentes de sítios diferentes). Todos os dias, esta rede global muda um bocadinho mais o mundo e… – na parte que nos toca – a música. A Internet democratizou o processo musical, e ofereceu, à partida, as mesmas armas a todos os guerreiros… ou as mesmas ‘katanas’ a todos os samurais.
Afonso Serro, Alexandre Moniz e André Santos, seguiram as suas influências, gostos e desejos musicais e construíram AILERON na oficina dos YAKUZA. Mas será AILERON é um projeto 100% português? É feito em Portugal, sim. É feito por jovens portugueses, também. É, de facto, um produto nacional (e está no topo do que foi feito por cá em 2020). No entanto, soa a ‘estrangeiro’, e assemelha-se a uma produção obscura londrina. E isso são ótimas notícias. O que é facto é que, ao não terem escondido as suas influências, os YAKUZA habilitaram-se a montar um álbum em forma de carro supersónico, que, certamente, irá derrapar nos ouvidos das pessoas que o decidam escutar.