Noiserv resolveu cantar exclusivamente em português. Já não era sem tempo! Assim sendo, e numa subtileza interpretativa, o N do final do título do álbum poderá ser entendido, de forma simultânea, como consoante inicial do seu nome artístico, mas também como o princípio de uma nova caminhada que o torna mais Nosso que nunca.
Os discos de Noiserv nunca são exatamente discos apenas. Há sempre um cuidado com o objeto em si. Forma e conteúdo conjugam-se para que algo fora do comum aconteça. Esse esmero já faz parte do seu universo artístico. Para mais, Noiserv é (sempre foi) um homem-orquestra completo. Momentos há (sempre houve) em que a música clássica (o piano, sobretudo) se abre a minimalismos mais contemporâneos, ou a uma aragem fresca e pop. A ideia orquestral, por vezes quase barroca pelo excesso de linhas sonoras, de cruzamentos de instrumentos, é a base da quase totalidade das suas composições. Em Uma Palavra Começada Por N tudo (ou quase) volta a ser assim. Ainda bem. Por vezes fugir de um registo, mais do que um passo em frente, pode representar um passo em falso, um espinho no pé. No entanto, aqui a novidade também tem lugar. Todas as letras dos onze temas do álbum são cantadas (quase faladas, por vezes) na língua em que melhor nos (des)entendemos. Algumas são desafiadoras, obrigando-nos a uma atenção a que vulgarmente não estamos habituados. Ainda bem. Ouvir é sempre ler, se escutarmos com atenção o que temos pela frente.
A sensação que nos fica é que devemos evitar ouvir Uma Palavra Começada Por N em dias de sol e calor. É outonal e invernoso o seu propósito. É frio, o ambiente. Convida a uma manta, uma lareira em brasa, um livro repousado no regaço, contemplação. É um disco que ocupa espaço, que se instala aos poucos, podendo ocupar mais do que o seu lugar na estante onde o pusermos em repouso. Infiltra-se, cria raízes. Tem dimensão.
É difícil escolhermos temas que se destaquem. Valem como um todo, todos eles. Parece que vão passando, um ao outro e assim por diante, um qualquer testemunho coerente. Quando chega ao fim, mantém-se na cabeça. É intelectual, portanto. Mesmo assim, arriscamos dois ou três. Amanhã, provavelmente, seriam outras as escolhas. “Eram 27 Metros de Salto”, o segundo tema do disco, mas também “Sempre Rente ao Chão” e “Por Arrasto”. A melancolia sem tempo a estender-se até ao fim do disco.
A estratégia de lançamento de Uma Palavra Começada Por N provoca várias interrogações, mas também aqui se terá inovado, embora seja difícil entender a razão de tal circunstância. Desde o começo do malfadado ano de 2020 que Noiserv nos foi mostrando, uma a uma, as suas novas onze propostas sonoras. A 25 de setembro revelou-nos a última. Quando o álbum saiu, os mais atentos já o conheciam. No entanto, e mesmo assim, ouvi-lo como corpo inteiro ainda traz satisfação, mas é muito questionável esta forma de dar corpo a um disco, quando se opta por fatiá-lo.
Uma linha final para que se entenda que é a soma das partes que faz o disco: os títulos das canções, quando lidos de seguida, podem formar uma frase. Mais uma prova de que o trabalho de Noiserv é rico, cuidadoso, conceptual. Ouvir um disco de Noiserv nunca é só ouvir um disco de Noiserv!