A junção de uma fadista portuguesa e um produtor catalão desconstrói a herança de Amália num disco revolucionário mas respeitador.
Não é fácil mexer no fado, e mais difícil é mexer na sagrada Amália Rodrigues, uma das poucas figuras que podemos dizer, sem medo, ser até maior do que o seu País. Apesar disso, o fado continua vivo, desde o mais tradicional – com muitos artistas a aparecerem e afirmarem-se – até às tentativas de lhe dar nova vida (veja-se o recente caso de Stereossauro, no muito bem conseguido Bairro da Ponte, de 2019).
Esta nova investida vem agora nas mãos de Lina, fadista portuguesa com formação clássica, e o catalão Raül Refree, músico que começou no hardcore, andou pela pop e um pouco por todo o lado, e que ganhou nome na colaboração com nomes fortes da vizinha Espanha como Silvia Pérez Cruz ou o fenómeno global Rosalía.
Figura da renovação do respeitabilíssimo flamenco, Refree aposta agora em fazer o mesmo com o igualmente respeitado fado. Para isso, Refree e Lina atiram-se ao valioso espólio de Amália, que a fadista tem como referência maior. Mais, o disco que agora lançam não tem uma única guitarra portuguesa, assentando em teclados esparsos e discretos e em electrónicas subtis.
Esta descrição seria suficiente para fazer qualquer purista do fado começar, de imediato, a arrancar os cabelos, mas o receio revela-se infundado. Não é a mesma coisa refundar o flamenco ou o fado, e Raül Refree teve a sensibilidade e a inteligência para o perceber. Sendo ambos estilos de música popular – no sentido de pertencerem profundamente ao povo – há uma festividade e um sol inerentes ao flamenco, por contraste com o mais sisudo e hermético fado.
Este disco dá muita atenção aos vazios e aos silêncios, deixando a voz emocionante de Lina bem nos comandos das operações. Tal como a sua capa sugere, é um disco fechado, invernoso e até, aqui e ali, claustrofóbico, por contraste com o technicolor “chunga” do flamenco de Rosalía. Mas, no fim, é o fado quem domina e vence, no final. Um fado sem a estridência das guitarras, mas com todo o seu sentimento.
Há quem veja neste disco e nestes exercícios uma vida para o fado no século XXI. Mas, na verdade, o fado é de ontem e de hoje, e existirá amanhã como expressão da alma de um povo. Podemos até vender o fado a pataco, aos turistas endinheirados que pagam demasiado por um falso caldo verde e um “very typical” best-of de temas mais animados. Mas, até nas nossas gentrificadas cidades, o fado continua a cantar a nossa História, a nossa vida, a nossa saudade.
Lina_ Raül Refree é um disco arrojado mas respeitador do que é o legado imenso da música. Que não se deixa distrair por um qualquer desejo de provocação artística mais gratuito, apenas quer ver, e mostrar, até onde o fado pode ir, e o que pode ser.
Um trabalho profundo, frio e escuro, mas muito bonito.