E chegámos ao fim de 2020 (finalmente), o ano que vai ser recordado durante bastante tempo e, infelizmente, pelas piores razões. O ano da pandemia dinamitou todos os quadrantes da sociedade e o da cultura foi, claramente, dos mais atingidos. Concertos e festivais cancelados e adiados, músicos sem lugar para ensaiar, gravar e tocar, e um público sem ter acesso aos seus artistas favoritos. Um ano totalmente atípico que, esperamos, não venha a ser igualado no futuro.
Devido a esta situação, muita gente se enfiou em casa e foi consumindo música. Muitos viraram-se para discos antigos, garantindo um reconhecível conforto para amenizar os efeitos psicológicos que o raio do vírus nos trouxe. E, talvez, por essa razão, não terá havido uma escolha óbvia nos Tops deste ano.
As escolhas do nosso Top Internacional expandiram-se por 111 discos, diversos estilos e poucas escolhas de artistas fresquinhos. Como anteriormente se referiu, as pessoas foram buscar conforto a faces e vozes já conhecidas.
Esta foi a nossa banda sonora de 2020, o ano que marcou o regresso de Bob Dylan e Fiona Apple. Continuando a veia prolífica, Wayne Coyne, com os seus Flaming Lips, deu-nos mais um disco belíssimo, enquanto Bill Callahan regressou à forma com Gold Record, o seu segundo após a paternidade. Rufus Wainwright volta aos tops com um disco cheio de bons canções. Uma palavra amiga para Bill Fay, que, depois de se ter dado como acabado para a música no início da carreira, teve uma segunda vida nos últimos anos e lançou o belíssimo Countless Branches.
Não nos esquecemos, porém, das desilusões do ano. Sufjan Stevens e Tame Impala lançaram discos tão esquecíveis que nem aos 20 melhores chegaram.
De referir que, embora tenha estado em lugares cimeiros num top anterior, o novo disco dos Avalanches não entrou para estas contas (e quem sabe para o nosso Top) devido a ter sido lançado após a contagem. Também Paul McCartney e Ryan Adams ficaram de forma pelas mesmas razões.
O ano de 2020 será recordado pelas piores maneiras, mas apesar de tudo houve muita e boa música e este Top reflecte bem isso. Que os próximos anos sejam mais felizes e que a banda sonora seja igualmente boa.
Frederico Batista

20. Nap Eyes
Snapshot of a Beginner
É tempo de se fazer justiça aos Nap Eyes. É tempo de acordar da sesta e perceber que é (quase) criminoso deixar de lado quem pode ser muito mais do que uma excelente companhia. O recentíssimo Snapshot of a Beginner é um ótimo álbum, um dos melhores deste ano que estacionou as nossas vidas. Peguemos nele e arranquemos sem precauções de maior. Desconfinar com os Nap Eyes não exige máscaras, nem luvas, nem distanciamento social. Basta ter bom gosto e verão que “vai ficar tudo bem”.
19. The Flaming Lips
American Head
Com American Head, a banda de Wayne Coyne e companhia volta a aterrar na sua never land, espaço onde o ambiente onírico se funde e confunde com uma qualquer realidade feita de som e sensação de efemeridade. Tudo parece ser volátil e passageiro, como a vida. E do disco, num modo geral e numa primeira abordagem, fica apenas isto: a melancolia de um final de tarde num país distante do nosso em qualquer dos quatro cantos do mundo. American Head dói e dá prazer, brilha e também é, ao mesmo tempo, de uma sóbria melancolia parda.
18. Bill Fay
Countless Branches
É na sólida segurança e leveza do cantautor inglês que nos deixamos navegar, enquanto escutamos Countless Branches, um enorme e comovente hino de esperança. À medida que envolvemos a nossa atenção às notas do piano, dos delicados arranjos e da voz algo frágil e melancólica mas sempre doce, a mensagem é bela e reconfortante. Não é tarde para devolver o músico ao merecido lugar de destaque da prateleira dos grande nomes da cena folk. Bill Fay está bem vivo e merece que lhe prestemos toda a atenção e não o deixemos cair de volta no esquecimento. Countless Branches e Bill Fay são uma lição de vida e de resiliência para todos nós.
17. Róisín Murphy
Róisín Machine
O quinto álbum de Róísín Murphy solo é dançável, com um equilíbrio muito digno entre a disco, um toque a house e a pop e tem canções que são singles imediatos e outros êxitos da pista de dança (se em 2020 as houvesse), só por si ou a pedir aquela remistura atrevida. Cheio de bons singles mas ganhando mais ao ser ouvido como um todo, este Róísín Machine é para ser ouvido com uns bons auscultadores, de olhos fechados para apanhar todas as camadas, ou bem alto enquanto se dança, esperando o dia em que possamos voltar a dançar juntos.
16. King Krule
Man Alive!
Ao fim de quatro álbuns, alguns melhores e outros piores, King Krule reinventa-se sem nunca se despedir da sua excentricidade discreta, que impossibilitou o mundo de o ignorar desde 6 Feet Beneath The Moon, de 2013. Nada se compara com a primeira vez que ouvimos a sua voz arranhada, as cordas da sua guitarra, a força da sua poesia, catártica e abstrata em igual medida. Mas Man Alive! sabe a algo quase novo, e enche-nos de entusiasmo mais uma vez para voltar a descobrir um King Krule que, do alto dos seus vinte cinco anos, tornou-se um homem.
15. Laura Marling
Song For Our Daughter
Song for Our Daughter é o sétimo disco de Marling, o que é impressionante para quem só tem 30 anos. Esta “canção para a sua filha” é em tudo ficcionada, já que Marling ainda não é mãe, mas inspirou-se no livro de Maya Angelou (“Letter to Our Daughter”) para deixar, desde já, essa herança.Laura Marling continua a fazer das suas e nós continuamos a deleitar-nos com as canções irrepreensíveis que nos atira.
14. Cornershop
England Is a Garden
Com England Is a Garden, os Cornershop voltam a florir como há muito não faziam. O álbum é, como se percebe, um regresso à boa forma. Desde que surgiram, em Leicester, que os Cornershop foram alargando o seu som até abarcarem o planeta nas suas extensões sonoras. Um dos seus trunfos sempre foi exatamente esse estupendo melting pot que incorpora cítaras e tamboras, flautas e guitarras, sintetizadores e tudo o mais que lhes aprouver para produzir beleza. Essa específica e rara formosura é a essência deste England Is a Garden e ouvir este novo trabalho dos Cornershop é um bálsamo para o corpo, para a alma, para o nosso triste mundo!
13. Sr. Chinarro
El Bando Bueno
Com El Bando Bueno cumpre-se um ciclo e projeta-se outro na discografia de Sr. Chinarro. É o que sentimos e pensamos sobre o seu recentíssimo álbum. O mundo não está para graças e Antonio Luque também não, mas isso, para nós que somos seus ouvintes, é motivo de grande prazer e satisfação. El Bando Bueno é um disco de alguém que fez uma pausa para apreciar o mundo. Não gosta do que vê, mas transmite essa ideia de vertigem, de insegurança e de inquietação da forma mais bonita possível. Não há sorrisos, há angústia e há, sobretudo, a certeza de que a estupidez humana tem dimensão planetária e projeta-se de forma cada vez mais crescente.
12. JARV IS…
Beyond The Pale
Com apenas sete temas e 40 minutos, Beyond the pale é um disco algo desigual, e só a voz e as palavras de Jarvis nos vão conduzindo com segurança por um caminho que conhecemos e que tanto amamos. Mas é também um registo que desbrava novos terrenos, experimenta novos exercícios, e nos mostra – se dúvidas houvessem – que a habilidade de composição e de escrita deste cinquentão de Sheffield tem sempre a capacidade de nos envolver e de nos surpreender. Jarvis continua único, continua a estar-se nas tintas para o estatuto de lenda do defuntíssimo britpop, continua à procura de comunicar connosco, naquele seu registo íntimo que mistura os grandes temas da vida com as pequenas misérias prosaicas da mesma.
11. Fontaines D.C.
A Hero’s Death
Olhando para A Hero’s Death como um todo, o que salta logo à vista é a versatilidade que a banda irlandesa demonstra no mesmo. Expandiram-se para lá do pós-punk, colocando na misturadora laivos de Television e PiL, atirando-nos doses iguais de baladas e canções com guitarras rápidas que conquistam à primeira audição e nos fazem suspirar por salas pequenas cheias até ao tutano e a chegada a casa com o ouvido a zumbir. A Hero’s Death é a prova provada que o rock salva vidas. Conselhos como “Don’t you play around with blame / It does nothing for the pain” são tudo o que precisamos.
10. Lianne La Havas
Lianne La Havas
Neste novo disco, Lianne ofereceu-nos 52 minutos de rock, que se mistura com pop, que se mistura com R&B, que se mistura com jazz. Dessa mistura resulta um álbum equilibrado e harmonioso que nos faz sentir e sorrir, sem que nós nos apercebamos disso. Realmente, é assim que o trabalho acaba: com um riso longínquo, mas próximo, de Lianne… “That’s it! It’s done!”. Por alguma razão, Lianne La Havas é um dos melhores álbuns do ano.
9. Rufus Wainwright
Unfollow The Rules
Depois de homenagear Judy Garland, de gravar óperas, musicar textos de Shakespeare e de um disco a lembrar a soul e o gospel dos anos 1970, Rufus Wainwright volta a jogar em casa: Unfollow the Rules, o novo trabalho, vê o canadiano regressar às canções pop escritas para guitarra e piano, ainda que aqui e ali com mais músculo. Unfollow the Rules é uma digníssima coleção de canções que não devem dar para o Panteão, é certo, mas que só trarão alegrias aos fãs. É um belo disco e já tínhamos saudades deste Rufus.
8. Porridge Radio
Every Bad
Every Bad, segundo tomo dos Porridge Radio, é um disco guturalmente fresco, remexendo em estruturas musicais conhecidas mas conseguindo um brilhante resultado da amálgama criada. São 41 minutos que passam num instante e que em novas audições sobressaem novos recantos que passaram despercebidos à primeira e até à segunda. É bastante difícil encaixá-los numa caixinha, a diversidade é algo que estimula e tanto temos momentos de pop clássica como rock mais visceral à la Savages, momentos de noise rock “sonicyouthescos” e outros de pós punk.
7.Phoebe Bridgers
Punisher
Punisher, segundo álbum a solo de Phoebe Bridgers, tem uma sonoridade mais madura, mais crescida, mais bonita. De voz doce e melancólica (segundo a própria, propositadamente diferente da entoação que tem quando não está a cantar), Bridgers transparece uma certa melancolia, com rasgos de notória assertividade, ao mesmo tempo que mostra uma incredulidade e um sentido de humor especialmente afiado. Destacam-se, também, as colaborações com Conor Oberst (Bright Eyes e parceiro no projeto Better Oblivion Community Center) e com Julien Baker e Lucy Dacus (do excelente projeto das três, boygenius)
6. The Strokes
The New Abnormal
The New Abnormal é um divisor de águas na carreira dos Strokes e isso foi evidente imediatamente nos singles que precederam o lançamento do álbum. É difícil para uma banda manter-se interessante vinte anos depois de lançar o seu primeiro disco. Requer curiosidade, coragem e abertura de espírito. Que os Strokes tenham conseguido lançar um disco tão bom em 2020 é impressionante. Que o tenham feito uma década depois do seu último lançamento de relevo, é um milagre. Mas eles voltaram e estão muito mais crescidos do que da última vez que os vimos.
5. Adrianne Lenker
songs
songs soa mesmo ao que é – um álbum gravado em confinamento numa cabana perdida nos confins dos Estados Unidos com Lenker despida de artifícios, a conquistar-nos a cada palavra sussurrada, a cada roçar de corda no braço da sua guitarra acústica. O coração partido de Lenker é mesmo a nota dominante de songs, fazendo deste o seu álbum mais pessoal. Lenker recorre com frequência à criação de figuras femininas várias nas suas canções, colocando todas as histórias que nos quer contar na boca de outrem, mas aqui é mesmo ela a reportar o que lhe vai nas entranhas, sem medos, como que a expurgar todos os momentos vividos e que ficam a esvoaçar na cabeça em período pós-ruptura. songs é uma maravilha de disco.
4. Fleet Foxes
Shore
Shore é composto por 15 músicas, com duração de 55 minutos, lançadas nas plataformas digitais, no equinócio, minuciosamente no minuto de ocorrência do mesmo. Robin Pecknold, a cara destes Fleet Foxes, sempre foi conhecido pelo seu perfeccionismo atroz, com um trabalho digno do labor de um artesão, conjugando vários intervenientes vocais, um quarteto de sopros, o coro de garotas, letras bem conseguidas e dando vivacidade à base folk no qual a banda sempre se movimentou. Shore é objecto fruto de pandemia e como tal olha para o mundo e para a sua escuridão respondendo com beleza, aceitação e luz. Todos precisamos disso para seguir com a nossa vidinha.
3. Bill Callahan
Gold Record
O homem da voz funda dá-nos mais um belo disco em que confirma que está, de facto, num campeonato à parte da esmagadora maioria da concorrência. Com Gold Record, e mesmo que fale muitas vezes na primeira pessoa, o norte-americano esconde-se mais. É o homem de óculos escuros em pano de fundo de uma das suas histórias aparentemente prosaicas, que escondem sempre, lá está, grandes verdades sobre o mundo, entregues com a subtileza de quem busca respostas mas não julga ter a certeza de nada. Menos ravinas, rios e águias, mais subúrbios de Nashville e bombas de gasolina no deserto nocturno.
2. Bob Dylan
Rough and Rowdy Ways
Em Rough and Rowdy Ways, Dylan oferece-nos uma comovente reflexão sobre a mortalidade, a arte e a memória. Este último trabalho prossegue com a estética vintage pós-Time out of Mind, como se o rádio assombrado do carro só passasse rhythm and blues dos anos 50. O velho mestre relembrando-nos como era a música antes de ele próprio ter mudado todas as regras da pop nos revolucionários anos 60. Perante a decadência espiritual da sua América, só a arte pode salvar, parece dizer-nos. Nós concordamos, lavando os pecados do mundo na beleza pura deste disco.
1. Fiona Apple
Fetch The Bolt Cutters
Surpreendente e a exigir várias voltas para lhe descobrir os segredos e as mensagens subliminares, Fetch the Bolt Cutters lembra-nos como é brilhante o Universo de Fiona e deixa-nos em suspenso, a pensar o que se seguirá. A nós, mortais, sem forma de contornar tempo ou espaço, resta esperar, tentar evitar crises de ansiedade e poupar energias a tentar prever o próximo passo da nova iorquina. Fiona move-se num mundo próprio, o dela onde consegue músicas quase em registo de spoken word, mas com um subtil contrabaixo a garantir que a melodia nos fica na memória. Neste álbum, Fiona reafirma o que já sabíamos – sabe que nada tem a provar, sente-se imune à pressão e exterior e deixa, subtilmente, o aviso: mais música, só quando lhe apetecer.
Editor-chefe:
Frederico Batista
Editores:
Alexandre Pires, Duarte Pinto Coelho, Francisco Pereira, Tiago Freire
Redacção: Alexandre R. Malhado, Ana Baptista, Ana Catarina Tiago, Ana Lúcia Tiago, Beatriz Costa, Beatriz Negreiros, Carlos Vila-Maior Lopes, Cátia Simões, Diogo Barreto, Filipe Garcia, Francisco Marujo, Gonçalo Correia, Joana Canela, João Salazar Braga, Liliana Fidalgo, Luís Marujo, Mafalda Piteira de Barros, Miguel Moura, Pedro Primo Figueiredo, Ricardo Romano, Tiago Crispim
Fotografia e Vídeo:
Cecile Lopes, Francisco Fidalgo, Inês Silva