Júlio Resende Fado Jazz Ensemble é muito mais do que um exercício formal. É a saudade da sua infância. É o destino de tudo passar…
O título do álbum diz quase tudo: um diálogo entre o jazz e o fado, entabulado em contexto de banda. Nem sempre Júlio Resende seguiu este caminho – os seus três primeiros discos são de jazz puro e duro – mas desde 2013, com o seminal Amália por Júlio Resende, que o fado se tornou a sua principal inspiração: Fado & Further (ao vivo), de 2015, é auto-explicativo, e mesmo o electrónico Cinderella Cyborg, de 2017, tem por lá um tal de “Fado Cyborg”. Nessa primeira fase, o piano de Resende apresenta-se sozinho, ou então acompanhado apenas pela voz (a própria Amália no fantasmagórico “Medo” e Sílvia Pérez Cruz na arrepiante “Lágrima”).
Agora, com Júlio Resende Fado Jazz Ensemble, o nosso algarvio predilecto segue um caminho mais ambicioso, convidando outros instrumentos para o regabofe. Se fosse só o contrabaixo e a bateria, o exercício seria, ainda assim, modesto (Bernardo Sassetti, Mário Laginha e Filipe Raposo exploraram – em raríssimas ocasiões, é certo – estéticas similares). A interessante novidade aqui é a presença de uma guitarra portuguesa, o elemento que faltava para uma síntese mais profunda entre o jazz e o fado. Grande parte do encanto do disco está na conversa atenta entre o piano de Resende e a guitarra de Bruno Chaveiro, um anunciando a melodia e o outro improvisando a resposta (num jogo de liberdade tipicamente “jazzista”).
Os quase-fados dominam o alinhamento mas não o esgotam, há também música tradicional portuguesa e até um standard do cancioneiro americano (“All the Things – Alfama – Are” recria o oldie “All the Things You Are”, um daqueles temas eternos que todos os velhos cantarolam no chuveiro).
O disco abre com “Vira mais Cinco (para o Zeca)”, um Vira ainda mais dançável do que o tradicional minhoto, devido ao seu saltitante compasso 5/4. Bonita homenagem ao mestre José Afonso.
Segue-se a lindíssima “Lira”, canção tradicional açoriana celebrizada por Adriano Correia de Oliveira. A melodia original é tão bela e tão pura, que Resende a respeita religiosamente, prescindindo de quaisquer complicações jazzísticas.
É, porém, no puro fado que Resende se transcende.
“Este Piano Não te Esquece”, tema dramático e complexo à “Gaivota” de Alain Oulman, é o momento mais comovente do disco, carregado de dor e de destino. Quem o piano não esquece é, claro, Amália, porque o nosso pranto será sempre a sua voz.
“Profecia” é a carta fora do baralho por ser cantado, e que bonita é a voz de Lina Rodrigues. É aqui que Resende sai do armário, assumindo-se fadista da cabeça aos pés.
Os demais fados, formalmente originais, são, na verdade, recriações. Destaque para o “Fado Blues (For Deolinda)”, que reinventa o “Fado Toninho” dando-lhe novos acordes. Nos fados tradicionais à Marceneiro, Resende amplifica o seu balanço implícito para níveis quase james-brown-ianos: o contrabaixo de André Rosinha faz estremecer a terra; o groove da bateria de Alexandre Frazão põe Amália a dançar no caixão.
É um disco muito bonito porque o fado que há nele é sentido. Resende cresceu em Olhão, onde há uma tradição forte de fado vadio. Lembra-se, desde muito cedo, da magia desses fados castiços, pejados de sentimento. Júlio Resende Fado Jazz Ensemble é muito mais do que um exercício formal. É a saudade da sua infância. É o destino de tudo passar…