Nascemos, crescemos, trabalhamos, com um bocado de sorte reproduzimo-nos, no fim morremos – é assim o bloco mais ou menos homogéneo de experiências a que chamamos vida. Mas depois há aqueles que como Bowie tornam a tarefa dos biógrafos um pouco mais complicada. Há tanta heterogeneidade no seu percurso – no estilo de vida, aparência, sexualidade, drugs of choice, música que fez – que parece que Bowie não viveu uma vida mas muitas, “like a cat from Japan”, como o próprio nos chamou a atenção em “Ziggy Stardust”. “Gato” porque viveu pelo menos sete vidas (e estamos seguramente a fazer as contas por baixo); “do Japão” porque sempre buscou o exotismo, procurando sempre sobressair na multidão (sim, “camaleão do rock” é parvoíce; o camaleão dilui-se, não sobressai). Tentaremos então rabiscar a traços grossos os contornos dessas tantas vidas que Bowie nos deu, fazendo a nossa ficar um pouco maior.
1947-1969: À procura de uma voz própria
Na sua primeira vida chamava-se David Robert Jones, um miúdo de uma família remediada do sul de Londres que cresceu a brincar por entre os escombros e as bombas alemãs. A Inglaterra cinzenta do pós-guerra era o local mais aborrecido do universo mas tudo mudaria em 1955 com a chegada do rock’n’roll, verdadeira válvula de escape para toda uma geração. Aos oito anos, quando David ouve pela primeira vez Chuck Berry e Little Richard, o arrebatamento que sente é tal que percebe de imediato o que quer fazer na vida. Não demora muito a dar os primeiros passos no ofício: aos quinze anos integra a sua primeira banda (os Konrads) e aos dezassete grava o primeiro single em nome próprio (a rockabilly “Liza Jane”). O grande salto acontece dois anos depois quando nasce David Bowie como nome artístico. Começa aqui o complexo jogo de espelhos entre o homem Jones e o artista Bowie.
Em 1967, Bowie conhece Lindsay Kemp, um dançarino avant-garde que lhe ensina os segredos do teatro e da pantomima. Com estas ferramentas, construirá mais tarde as suas célebres personagens. No mesmo ano, gravará o seu primeiro longa-duração, apenas intitulado David Bowie. As suas canções são encantadoras, cheias de humor nonsense das lenga-lengas da infância, mas o seu flagrante anacronismo acaba por prejudicá-lo. Quando por todo o lado fervilhava o vibrante rock psicadélico, David dá-nos temas antiquados de music hall, o teatro de variedades lá do sítio. O disco passou completamente despercebido. No ano do revolucionário Sgt. Peppers, ninguém queria saber da vozinha de pato donald da “Laughing Gnomes”.
Em 1969, alinha a criatividade com a sua época, fazendo um disco de folk rock também chamado David Bowie. Apesar de ser um disco competente, está pejado de lugares comuns hippies, que nos lábios do artificioso Bowie soam sempre a falso. “A Letter to Herminone” pode ser uma bonita canção de amor mas se aparecesse num disco dos Crosby, Stills & Nash ninguém daria pelo engano. Só encontraria uma voz própria na melancólica “Space Oddity”- o seu primeiro êxito. É difícil encontrar ainda hoje retrato mais pungente da solidão do que a do pobre astronauta Major Tom à deriva na imensidão do espaço. Major Tom pode não ser ainda um alter-ego, pois apenas tem vida dentro da sua canção, mas no seu vigor dramático seria o pai espiritual de todos os posteriores alter-egos.
1970-1974: A rainha do glam
Uma palavra define a segunda vida de Bowie: glamourosa. Juntamente com Marc Bolan dos T-Rex, David inventa o glam rock, questionando os dogmas da flower power. No lugar da autenticidade hippie e dos papéis sexuais bem definidos, o glam prefere as artificiosas máscaras e a ambiguidade andrógina. Oscar Wilde iria gostar da festa.
O primeiro statement glam assinado por Bowie é porventura a capa de The Man Who Sold the World (de 1970), onde aparece “escandalosamente” vestido de mulher. A mistura de testosterona hard rock com o seu travestismo é bizarra e explosiva, quais Led Zeppelin em digressão no Conde Redondo. É o primeiro grande disco de Bowie mas o mundo ainda não estava preparado para tamanha provocação. Fosse pela agressividade do som, fosse pelo “ultraje” da capa, David permanece ainda na semi-obscuridade. A viciante canção homónima só seria um êxito vinte e três anos depois na boca de Cobain.
Em 1971, David dá ao mundo a sua primeira obra-prima: Hunky Dory, o mais melódico e inspirado de todos os seus discos. No auge da sua criatividade, não é Bowie que procura as canções, são elas que o encontram, sem que perceba muito bem de onde raio elas vêm. “Changes” não é apenas um grande tema, é também o seu grande manifesto artístico e pessoal: mudar, mudar sempre, para tentar fintar a morte. Com “Song for Bob Dylan” e “Queen Bitch”, presta tributo aos seus mestres Dylan e Reed, comprando assim a licença para os assimilar à vontade. Mais tarde, faria o mesmo com os Stones e os Kraftwerk. Bowie sempre foi o aristocrático ladrão, de casaca e luvas brancas, roubando apenas aos melhores, com requinte e sofisticação. Como é que com tanto plágio descarado Bowie conseguia soar sempre a ele próprio é a pergunta do milhão de euros.
Em 1972, a sua pulsão para a mudança foi tão forte que deu mesmo origem a uma personagem distinta do seu criador: Ziggy Stardust, primeiro alter-ego inteiriço da cabeça aos pés (se Pessoa e Bowie se encontrassem numa taberna da velha Lisboa, duvido muito que houvesse aguardente que chegasse para tantos alter-egos). O frontman dos Spiders From Mars é uma estrela de rock alienígena, poderosa metáfora da diferença e do direito a ela. O círculo que tem desenhado na testa denuncia a sua origem extraterrestre, o seu cabelo é cor de laranja e espigado, a sua sexualidade- ambígua e andrógina. O álbum que narra a sua ascensão e queda é uma bandeira, que os adolescentes desadaptados não hesitam em erguer com orgulho. É o primeiro sucesso comercial de Bowie, por enquanto apenas circunscrito ao seu Reino Unido.
Em 1973, aparece um novo alter-ego, de seu nome Aladdin Sane. Aladdin é parecido com Ziggy mas tem um relâmpago no rosto e uma lágrima caída sobre o peito. As semelhanças são tão grandes que tudo indica que Aladdin seja o próprio Ziggy, agora naturalizado americano. O álbum com o mesmo nome, nova obra-prima do glam, prossegue a reflexão sobre a fama já explorada no disco anterior, mas agora embrulhada numa sonoridade mais ianque. A 3 de Julho, Bowie faz uma das manobras mais arrojadas da sua carreira: no auge da sua fama mata Ziggy num célebre concerto em Londres, ao som de “Rock’n’Roll Suicide”. É preciso tomates, e uma boa dose de egocentrismo, para extinguir uma banda com a inventividade dos Spiders no auge da sua fama.
No mesmo ano grava Pin Ups, disco de covers das suas bandas britânicas favoritas dos swinging sixties (dos Who aos Kinks, dos Them aos Yardbirds). Não acrescentando nada de relevante à sua obra, é contudo uma bonita carta de amor à cena mod da sua adolescência.
Em 1974, estando Ziggy-Aladdin-Stardust-Sane morto, uma outra personagem entra em cena. Chama-se Halloween Jack, usa uma pala no seu olho direito, uma argola na orelha esquerda e um lenço ao pescoço. No fundo, mais não é do que Ziggy disfarçado de pirata. É ele o protagonista de Diamond Dogs, álbum sombrio e pós-apocalíptico vagamente inspirado no romance de Orwell, “1984”. O disco tem grandes canções – como a irreverente “Rebel Rebel” e a épica “We Are the Dead”- mas falta-lhe a coesão e elegância das três obras-primas anteriores. É também um álbum de transição, com o funk apocalíptico de “1984” anunciando o namoro com a música negra americana dos discos seguintes.
Acaba aqui a sua fase glam, muito influente e a predilecta de muitos fãs. Brett Anderson e Bernard Butler dos Suede estarão seguramente entre eles. Roubariam quase tudo à dupla Bowie/Mick Ronson.
1975-1976: O artista soul
Bowie muda-se para a América, emergindo por completo na nova cena soul e funk de Nova Iorque, Filadélfia e Los Angeles. Deita fora as lantejoulas e purpurinas, adoptando uma aparência menos extravagante. Com a “plastic soul” de Young Americans, conquista por fim a América: o single “Fame” chega a número um. Se a sua criatividade e carreira vão de vento em popa, o seu equilíbrio pessoal começa a desmoronar-se. Magro como um cão, alimentando-se exclusivamente a leite e cocaína (mais cocaína do que leite), começa a ser assolado por estranhos delírios: vê fantasmas, sente-se perseguido, chegando mesmo ao ponto de exorcizar a sua piscina, que julga amaldiçoada com magia negra. Não sendo racista, antes pelo contrário (a sua namorada de então, a bonita cantora negra Ava Cherry, pode confirmar as suas credenciais nesta matéria), desenvolve um inesperado fascínio pela iconografia nazi, em parte derivado do seu desequilíbrio psíquico, em parte uma manobra de marketing para a imprensa continuar a falar dele (“there’s no such thing as bad publicity”, pois então). Aquele que é porventura o maior símbolo pop da liberdade individual ser visto publicamente como um fascista é uma das suas deliciosas ironias.
É neste contexto que surge um novo alter-ego chamado Thin White Duke, com um visual retro da Alemanha dos anos vinte: brilhantina no cabelo cuidadosamente penteado para trás, camisa branca e colete preto bem engomados, cigarro cheio de estilo ao canto da boca. Tudo nele tresanda a aristocrata vicioso da república de Weimar. Onde Ziggy era feminino e excêntrico, Thin White Duke é masculino e contido; em comum, a elegância e o charme. O álbum feito à imagem e semelhança desta nova personagem, uma nova obra-prima chamada Station to Station, é gravado sob o signo da mudança: as canções não estão escritas à partida, nascendo em estúdio ao sabor da experimentação; a textura e a ambiência ganham primazia sobre a melodia; a influência europeia do gélido krautrock mistura-se com o calor da música negra americana. Está formada a matriz para os três álbuns seguintes.
Los Angeles está a fazer-lhe mal: demasiada cocaína, demasiada solidão. O seu amigo Iggy Pop sente quase o mesmo: demasiada heroína, demasiada confusão. É então que os dois decidem se exilar em Berlim ocidental e começar tudo de novo. Uma nova vida a caminho.
1977-1979: O vanguardista de Berlim
David e Iggy não levam propriamente uma vida de santos em Berlim. Mulheres, cerveja, cabarets, uns cheirinhos de vez quando, fazem parte da sua ementa. Mas comparado com os baldes de cocaína de Los Angeles parecem viver agora num mosteiro. Com uma generosidade incrível, Bowie relança a carreira de Iggy Pop, como antes fizera com Lou Reed. Produz Idiot e Lust For Life (as duas obras-primas de Iggy a solo), oferece-lhe as suas canções mais fortes de então (pérolas como “China Girl” e “Nightclubbing”) e promove uma tour de Iggy Pop, onde assume a discreta condição de teclista da banda. A forte amizade que se estabelece entre ambos cicatriza muitas feridas.
É então que se começa a desenhar o que para muitos é a sua fase mais criativa: a trilogia de Berlim, três álbuns visionários que mudariam por completo a paisagem da pop. Tony Visconti será mais uma vez o produtor, Brian Eno será o inventivo teclista, Iggy Pop será o comediante de serviço, alegrando as sessões com as suas recordações rocambolescas do tempo dos Stooges (banda cuja herança foi reclamada pela cena punk que acabara de explodir).
O lado A de Low (de 1977) segue as pisadas de Station to Station, apurando aquela deliciosa mistura de gelado krautrock com chocolate quente da soul, como se os Neu! e Sly Stone fossem triturados na mesma batedeira. A surpresa viria porém no seu mítico lado B, quatro temas instrumentais com o lúgubre sintetizador de Eno e as ocasionais vozes espectrais de Bowie gelando tudo pelo caminho. Quem não chora ao som de “Warszawa” não é filho de boa gente.
Nesta fase de Berlim, Bowie está tão concentrado em tratar das suas nódoas negras sentimentais que nem sequer tem cabeça para brincar aos alter-egos. Ainda assim, a capa de Low acaba por nos conduzir a uma nova personagem: Thomas Jerome Newton, o alienígena do filme “The Man Who Fell to Earth”, representado pelo próprio Bowie. Mas não era Ziggy Stardust também um alienígena? Não são todos os seus alter-egos afinal sempre a mesma criatura: o estranho, o diferente, o freak? Não é sempre a mesma metáfora da margem a alimentar todas as suas máscaras? Cremos que sim e através desta reiterada afirmação pop do valor da diferença, Bowie acabaria por transformar mais o mundo do que todos os Bob Geldofs e Bonos desta vida.
Heroes (do mesmo ano) é o irmão gémeo de Low: lado A com canções frias com groove quente, lado B dominado por instrumentais glaciares. Sendo o único da trilogia a ser totalmente gravado em Berlim (a poucos metros das torres de vigia do infame muro), é aquele em que o espectro da guerra fria mais se faz notar. Mas se o tom do álbum é sem dúvida sombrio, a icónica canção-título dá-nos um ténue fio de luz. Mesmo nas sombras de uma cidade dividida, mesmo que tudo os separe, mesmo que ele beba demasiado, mesmo que ela seja ruim, eles podem ser rei e rainha, heróis nem que seja por um dia.
Lodger (de 1979) sempre foi tratado, com alguma injustiça, como o patinho feio da trilogia de Berlim. Se de facto há qualquer coisa nele de arty mas insonso, college rock para contabilistas, há que lhe louvar a dignidade de seguir o seu próprio caminho. Não há aqui lados B instrumentais de fazer cortar os pulsos e ainda bem (se os houvesse, o que antes era uma corajosa experimentação passaria a ser um enfadonho cliché). Há, isso sim, um sadio passo em frente em direcção a novos caminhos, com destaque para o travo étnico de muitas das suas canções. Figuras como David Byrne, Peter Gabriel e Paul Simon receberiam mais tarde os louros por terem inventado o chapéu da world music. Sucede que o exótico Lodger aconteceu antes.
Está assim encerrado o influente tríptico de Berlim, que lançou pistas musicais em todas as direcções (o seu tom sombrio e robótico foi uma referência central para o pós-punk dos Joy Division e seus herdeiros; o seu namoro kraut com os sintetizadores e a batida electrónica exerceu uma influência decisiva sobre toda a electro-pop dos anos 80). Termina então o seu exílio na Europa. No regresso à América, será que os seus pegajosos fantasmas ainda iriam na bagagem?
1980-1991: Ascensão e queda da estrela interplanetária
A década de oitenta foi terrível para Bowie mas curiosamente começou da melhor maneira: Scary Monsters (Super Creeps) faz a síntese perfeita entre o apelo comercial e a qualidade criativa, satisfazendo de uma só penada público e crítica. Um novo alter-ego assoma, o Pierrot de “Ashes to Ashes”, exorcizando de uma vez por todas o espectro da cocaína: “you know Major Tom’s a junkie” (só os maiores entre os maiores conquistam o privilégio de uma auto-referência legítima). Seria um dos discos mais influentes de Bowie, com temas que despoletariam carreiras inteiras (o que os Bauhaus devem a “Scream Like a Baby”, os Blur a “It´s No Game” e os Suede a “Teenage Wildlife” daria para pagar toda a nossa dívida pública).
1982 é o ano de uma pérola perdida da sua discografia, que infelizmente nunca foi reeditada em CD. Falamos de Baal, um EP com cinco canções escritas por Brecht para a sua peça de teatro com o mesmo nome. O próprio Bowie encarnou para a BBC a personagem de Baal, “poeta e cantor bêbado, rude e mulherengo”, aproveitando o pretexto para gravar este maravilhoso disco. Talvez em nenhum outro se ouça a voz de Bowie tão rigorosa e cristalina.
Já em 1983 as coisas não correram tão bem. Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, David Bowie deu por si na cama transformado num gigantesco Phil Collins. Por mais que arrastasse o seu novo corpo disforme, à procura de uma qualquer réstia de integridade artística, acabava sempre por tropeçar num qualquer contrato milionário com a EMI ou com a Pepsi, num qualquer dueto dengoso com o Freddie Mercury ou com a Tina Turner, num qualquer Live Aid em Wembley para apaziguar as nossas más consciências.
Mas se Let’s Dance é de facto uma grandessíssima meretriz, também é verdade que se trata de uma puta fina do melhor quilate. Todo o disco é obscenamente desenhado para vender; mas quem não gosta de umas boas obscenidades de vez em quando? Mesmo vós, ó castos puristas que renegais tão leviano disco, confessai: não espreitais também vós de vez em quando no Spotify, com os estores cuidadosamente corridos, o groove vicioso das suas três primeiras canções? Não há volta a dar: a perfeição hedonista de “Modern Love”, “Let’s Dance” e “China Girl” definem, para o bem e para o mal, os mal amados anos oitenta.
O sucesso colossal de Let’s Dance foi a sua maldição de Midas. Adulado por milhões de pessoas, Bowie sentiu-se obrigado a continuar a servir o seu novo e voraz público. Este conformismo é uma infeliz novidade na sua carreira. No passado, sempre desafiara os seus ouvintes com novas e irreverentes propostas, fazendo a história da pop avançar. Agora, Bowie limitava-se a acomodar a sua música aos gostos prévios do seu público, estagnando criativamente. Mais do que um mau disco, Tonight é sobretudo conservador e preguiçoso. Nos seus álbuns de 1977, Bowie inspirara-se na pop electrónica dos Kraftwerk quando ninguém os conhecia fora da Alemanha; agora, em 1984, Bowie chegava ao reggae pelo menos uns seis anos atrasado, quando os Police já tinham explorado o filão até à náusea e morrido entretanto. No vídeo de “Blue Jean” aparece um novo alter-ego, a vedeta Screaming Lord Byron, estranho cruzamento entre o Aladim e um estrunfe; mas o verdadeiro alter-ego seria o próprio Bowie sem máscara, pop star decadente e sem rumo. O álbum foi novamente um gigantesco sucesso comercial mas os fãs da velha guarda começaram a abandonar o barco.
Com Never Let Me Down (de 1987), Bowie bateu no fundo. A indolência e o mau gosto dos arranjos persistiam mas agora o problema principal era outro: a criatividade de David atingira o zero absoluto, sendo difícil encontrar uma canção de jeito mesmo para os padrões do mainstream. Ainda assim, colocando as menos medíocres como singles, e deixando a milionária engrenagem de marketing fazer o resto, o disco vendeu outra vez que nem amendoins. Morrissey desabafaria com razão: “Bowie’s a business, you know. He’s not really a person.”
Em 1989, acordou finalmente da deriva mainstream, procurando livrar-se do adiposo estatuto de estrela interplanetária. O plano foi tão engenhoso como audaz: eclipsar o nome David Bowie e mostrar-se ao mundo apenas como um dos tipos que toca nos Tin Machine. A parte boa é que a vedeta high profile morreu para todo o sempre; a parte má é que ao pé dos entediantes Tin Machine (1989) e Tin Machine II (1991), os Dire Straits são uma banda fascinante.
1993-1997: O forasteiro da electrónica
Os anos noventa marcam o renascimento criativo de Bowie, o tão ansiado momento em que os seus antigos fãs voltam a falar dele sem vergonha. Este regresso à boa forma faz-se através do namoro com a nova electrónica das pistas de dança, do house ao drum and bass, do tecno ao industrial. Como andara a dormir nos anos anteriores (entre outras coisas, com a parvoíce dos Tin Machine), apanhou um comboio já em movimento, ao contrário do que sucedera nos anos 70, onde sempre ocupara a carruagem da frente. Seja como for, mesmo já não sendo ele a ditar as novas direcções da pop, valeu bem a pena o génio criativo que espalhou nos seus quatro discos seguintes.
Tudo começou em 1993 com Black Tie White Noise. Casado de fresco com a bonita Iman (a conhecida top model somali), fez do novo álbum a celebração da boa nova (e que saboroso é o groove de “The Wedding”). Ao mesmo tempo, em temas agridoces como “Jump They Say” e “I Fell Free”, ganha finalmente coragem para chorar a morte do seu irmão e ídolo de juventude (Terry Jones enlouquecera no final dos anos 60 e atirara-se para debaixo de um comboio em 1985). Ainda não é Bowie no auge da sua forma, longe disso, mas está claramente a percorrer o trilho certo para lá chegar.
No mesmo ano, lançou também Budha of Suburbia, cujo ponto de partida fora a banda-sonora que gravara para a série homónima da BBC. Agora, sim, Bowie dá um enorme salto qualitativo. Se no álbum anterior ainda estava um bocado no modo “que vergonha, o meu pai está na pista de dança a fingir que tem a minha idade”, agora, com a electrónica fresca e arrojada de Budha of Suburbia, Bowie conquistou por fim o respeito até dos putos com mais acne. Infelizmente, o desinvestimento da editora na promoção do disco fê-lo passar completamente despercebido. Ainda hoje muitos fãs do Bowie perguntam: Budha quê?
Em 1995, Bowie dá um novo passo em frente com 1. Outside, o disco que marca o reencontro com o mago Brian Eno (com quem não colaborava desde a trilogia de Berlim). Como seria de esperar, o gosto pelo risco e pela experimentação regressam a todo o vapor. O conceito do álbum é também interessante: num futuro sombrio em que o crime é legitimado desde que seja elevado à condição de obra de arte, um tipo que é meio inspector da polícia, meio crítico de arte, investiga um crime de contornos macabros. É difícil imaginar distopia mais terrível do que esta em que o belo e o feio passam a ser os derradeiros critérios do bem e do mal. Pena o disco ser tão longo (78 minutos!) e ter tantos interlúdios narrativos a maçarem o ouvinte; estaria à altura do génio de Scary Monsters se não fosse tão desmedido nas suas pretensões.
A sua fase electrónica encerra da melhor maneira com Earthling de 1997. Numa clara reacção à pompa do álbum anterior, Earthling é mais directo e certeiro, oferecendo-nos clássicos instantâneos como “Little Wonder” e “Dead Man Walking”. Como seria de esperar, o disco vendeu muito mais do que o seu prolixo antecessor. Mas nem só de sensibilidade pop vive o homem: uma certa preguiça e previsibilidade na estrutura das canções embotam um pouco do seu brilho.
Bowie fora incansável nestes quatro anos de efervescência electrónica. Merece agora descansar no leito de uma nova vida.
1999-2013: O tranquilo escritor de canções
Com cinquenta e dois anos de idade, e vinte e dois álbuns de estúdio no papo, Bowie não tem de provar absolutamente nada a ninguém. Não precisa de continuar a oferecer – semana sim, semana não – novas revoluções estéticas ao mundo, para ser o gigante que é. O seu lugar no Olimpo da pop já ninguém o tira, num concílio onde só divindades como os Beatles e Dylan têm também lugar cativo. David pode agora saborear em paz o merecido descanso do guerreiro. Pondo a electrónica e a experimentação em banho maria, Bowie regressaria nos quatro álbuns seguintes ao formato canção que já fora o seu nos anos 70: temas simples, despretensiosos, orgânicos e sem adornos.
Hours…, de 1999, é o primeiro capítulo desta fase serena, quase contemplativa. As melodias são bonitas, e apreciamos a sua simplicidade e despojamento, mas talvez Bowie tenha levado a sua paz interior longe demais. Falta-lhe tensão e angústia, como uma poça de água tépida onde os putos se aborrecem na praia.
Por momentos receámos que o robe e as pantufas tivessem vindo para ficar mas o regresso de Tony Visconti à produção deixou-nos descansados. Os fantasmas de Bowie marcam presença em Heathen (de 2002), acrescentando às suas canções uma densidade e um desconforto que só as enriquecem. Tendo acontecido há pouco a tragédia do 11 de Setembro, o tom sombrio do disco conseguiu captar na perfeição o espírito do seu tempo.
Reality, de 2003, continua no bom caminho. A produção de Visconti é maravilhosa, trazendo de volta alguma da tensão e sujidade dos discos de Berlim. As canções são espessas e complexas, dando gosto degustá-las camada a camada. Veja-se por exemplo a soturna “The Loneliest Guy”. Se as palavras dizem “mas eu sou o tipo mais sortudo, não o tipo mais solitário”, o tom triste com que são cantadas (de piano fumarento, chorando madrugada fora) diz exactamente o contrário. O subtexto aparece-nos então cristalino: a fama é uma maldição, irmã gémea da solidão, e a desajeitada negação do narrador só serve para expor ainda mais a sua ferida.
O disco foi o pretexto para uma bonita tour pelo mundo que, no equilíbrio do seu alinhamento entre clássicos e grandes temas recentes, mostrava bem a coesão da sua obra (ao contrário dos Stones, que apenas sobreviviam à sombra dos êxitos do passado). Infelizmente, a tour acabou mais cedo do que era previsto. Num concerto na Alemanha, o coração de Bowie pregou-lhe uma bela partida, obrigando-o a ser operado de urgência. O coração voltou ao sítio mas, pelo sim pelo não, esteve dez longos anos a bater devagar.
Em 8 de Janeiro de 2013, no dia do seu 66º aniversário, quando todos tínhamos por garantida a sua vitalícia reforma, Bowie surpreende o mundo com um novo álbum. Preparado durante dois anos no mais absoluto segredo, The Next Day não poderia ser melhor prova de vida. A maioria dos temas é roqueira e incómoda, e toda essa aspereza de fundo só serve para elevar mais a sua canção mais sublime- a frágil e comovente “Where Are We Know”. Sim, de quando em vez, é bom que nos relembrem o óbvio: por mais curta e amarga que seja a puta da vida, ela continuará a valer a pena “enquanto houver sol, enquanto houver chuva, enquanto houver fogo, enquanto houver eu, enquanto houveres tu…”
2016: A despedida
Em 8 de Janeiro de 2016, a surpresa maior não foi ter aparecido Blackstar nos escaparates das lojas; o verdadeiro assombro foi o seu génio e audácia, em total ruptura com os discos low profile dos últimos anos. Trinta e seis anos depois de Scary Monsters, Bowie regressa finalmente às obras-primas, com um registo denso e espiritual, melancólico e experimental, arrojado e sepulcral. Blackstar é também o palco para um novo alter-ego: um profeta vendado com botões no lugar dos olhos a que alguns chamaram “button eyes”.
Mal sabíamos nós das circunstâncias trágicas que rodeariam o disco. Dois dias depois, numa manhã triste de segunda-feira, o mundo chora a sua morte. David lutava há 18 meses contra o cobarde cancro Golias. Se o corpo de David acabou por soçobrar, o espírito elevou-se mais alto do que nunca na comovente carta de despedida que é Blackstar. O tema-título ilustra melhor do que qualquer outro esta queda e ascensão: na sua lúgubre primeira parte, o corpo moribundo de David Jones degrada-se até se apagar; na luminosa segunda parte, o espírito do artista David Bowie liberta-se e ascende em direcção à eternidade.
Não descanses nunca em paz, amigo Bowie. Faz os anjos, as anjas, tanto faz. Cheira as linhas de que é feito o paraíso. E continua a escrever-nos canções, homem das estrelas.
Sem elas, como poderíamos nós ver à noite?