Por vezes, temos que permitir que a vida nos surpreenda. Há certos fenómenos naturais e mundanos que não conseguimos explicar por muito que tentemos, mas temos de nos agarrar não a explicações concretas mas sim à certeza que, de facto, aconteceram. E aproveitar. Afinal de contas, como é que foi possível que quatro miúdos estranhos de Baltimore, unidos por uma vontade maior que a vida de gritar ao microfone e construir paisagens sonoras de uma esquizofrenia comichosa ao ouvinte, agora, quinze anos volvidos, serem uma das bandas alternativas mais celebradas e amadas da atualidade? Aconteceu: ao décimo disco e após mais quinze anos de atividade, eis os Animal Collective. O prazer é todo deles.
Recuemos. Foi na cidade portuária de Maryland, plantada na extremidade atlântica dos Estados Unidos, que se fizeram as introduções dos membros dos Animal Collective uns aos outros. Primeiro, de Noah Lennox (Panda Bear) a Josh Dibb (Deakin) ainda no segundo ano de escolaridade. Mais tarde, em meados do ensino secundário, foi a vez de Dibb travar conhecimento com Dave Portner (Avey Tare) e, de seguida, com Brian Weitz (Geologist). Os quatro rapazes viram florescer entre si uma amizade robusta e mantiveram-se, até aos dias de hoje, o singular elenco da coletiva colorida que, à época, ainda estaria para surgir: apesar de Lennox e Tare serem os únicos membros que participaram consistentemente em todos os projetos vindouros, sendo que Dibb e Weitz nem sempre estão presentes na feitura e que a formação vai mudando conforme o disco – nunca houve mais um único nome a penetrar a roda-viva florescente.
Uma paixão comum por filmes de terror e uma veneração à banda americana Pavement foi o que levou Lennox e Weitz, aos quinze anos, a pegarem nos instrumentos mais próximos e a fazerem o pouco que sabiam com eles – mais tarde, Dibb juntar-se-ia à equação, formando os três mais um amigo a sua primeira e falhada banda – Automine. Em 1995, lançavam o primeiro e único LP do projeto, Padington Band, e mergulhavam num mundo de experiência com drogas psicadélicas que os acompanharia na feitura confusa dos seus primeiros discos.
Os anos passaram e quiseram obrigar as crianças a envelhecer como o resto: a deixar na gaveta a paranóia musical, a vontade de berrar toda a fúria que não sabiam guardar dentro de si e de construir freneticamente paredes de som como quem não quer seguir as regras. Crescer. Mas rapidamente, os quatro amigos encontraram o caminho uns para os outros. Em Agosto de 2000, o disco de estreia: o difícil, gutural, a dança de tribo frenética mastigada por sintetizadores maciços de Spirit They’ve Gone, They’ve Vanished, esculpido pela criancice psicadélica de Portner e Lennox.
O segundo LP, Danse Manatee, lançado no ano a seguir, revelou-se ainda mais orelhudo e irrequieto – a entrada de Weitz na equação proporcionou uma experiência esquizofrénica de frequências a ferver em energia explosiva, cuja falta de estrutura compreensível não fez senão confundir críticos e fãs. Os Animal Collective estavam a entrar demasiado dentro de si próprios, fechavam-se ao mundo, a sua delicada estranheza revelava-se demasiado amarga para ser engolida até pelos que lhes seguiam de perto: as drogas e a necessidade de fazer mais, mais, mais, de primar pela complicação e pela estranheza, torcendo a visão do mundo real, valeram-lhes o torcer de narizes coletivos dos ouvintes. Chegara a hora de acalmar os ânimos, respirar, deixar quem os ouvisse respirar também. E assim surgiu Campfire Songs, em 2003.
Desta vez, Weitz abandona a dupla habitual de Lennox/Portner para dar lugar à estreia de Dibb em álbum, e, reunidos num alpendre gelado algures em Maryland, num único take, embalam-nos (!) ao sabor das guitarras acústicas e coros mastigados, fazendo-nos querer baloiçar diante da fogueira à cadência das letras de uma simplicidade e de uma pureza difícil de encontrar em mais lado algum. Campfire Songs é um marco de maturidade, é um suspiro de alívio para a banda e para o público, deixar de saltar, suar, gritar, assim que o sol se põe, compreender a necessidade de fechar os olhos e dormitar de vez em quando.
Nos anos que se seguiram, os Animal Collective continuaram afastados do frenesim das baterias e sintetizadores (fora o disco Here Comes The Indian, de 2003), trocando a sala às escuras e as drogas que fazem mexer pelos prados verdejantes, as guitarras acústicas e as letras carinhosas. Seguiu-se Sung Tongs, em 2004 – considerado, por muitos, o auge da banda até então, cimentando o seu lugar no pódio freak folk da primeira metade da década de 2000 – no qual a dupla original pega na guitarra e faz com ela o que melhor sabe: músicas que vêm do coração, e que, só por isso, conseguem tornar invisível qualquer imperfeição técnica que pudesse fazer tropeçar o seu balançar. Em Maio do ano seguinte, mantiveram o mote de canções de fogueira, desta vez unindo forças com outra gigante do folk, em tempos esquecida, agora regressada ao mundo da música. Foi Prospect Hummer, de 2005, que marcou de forma colossal o regresso da anciã Vashti Bunyan, e a junção da sua voz meiga com os coros de criança da coletiva resultam numa mistura perfeita, à qual não falta nenhum ingrediente, e que prima pela doçura impossível de reproduzir em mais lado algum.
Volvida a primeira metade da década de 2000, os Animal Collective pareciam já ter feito tudo o que havia para fazer. Tinham começado com os pés todos, urrando para microfones, martelando sintetizadores ao som de batuques furiosos, assustando tanto o público como a si próprios. Tinham-se, de seguida, retraído ao máximo, confinando-se às guitarras acústicas, aos coros a lembrar uns Beach Boys da floresta e às canções de acampamento. O que lhes faltava fazer? Em 2007, a resposta aterrou-nos no colo de forma barulhenta: Strawberry Jam chegou como um grito de Ipiranga por parte da coletiva inteira (foi um disco no qual todos os membros participaram): é isto que nós somos, é isto que vamos ser daqui em diante e preparem-se, porque nunca ouviram nada assim.
Apesar do seu antecessor, Feels, abocanhar já uma maturidade e uma evolução sonora em relação a trabalhos anteriores, Strawberry Jam marca um ponto de viragem estrondoso para os Animal Collective: é aqui, mais do que nunca, que encontram o seu nicho para trabalhos vindouros e o som que ficará a banda sonora do seu legado – uma ponte entre a energia de reboliço do psicadélico furioso dos primeiros trabalhos e as melodias ternurentas que se prendem no ouvido de Sung Tongs, Feels e Prospect Hummer. Com “Fireworks”, escrevem o seu primeiro hino digno de ver a letra decorada e berrada por milhares em palcos maiores do que aqueles que conheciam até então. E tudo com a graça de quem o faz sem querer. Resultou, pelos vistos – a receção calorosa do público e da crítica foi a prova derradeira. Strawberry Jam dava já sinais de ser um dos discos da década, o disco com o qual certamente os Animal Collective ficariam na boca do povo durante anos e anos. E depois, chegou com um estrondo o ano de 2009.
Merriweather Post Pavillion é maior do que a vida. É um marco tremendo não apenas para a banda mas para o mundo da música e da nova vaga de pop psicadélico do século XXI: está inscrito na pedra para sempre, e daqui a dez, vinte ou até cinquenta anos poderá ser revisitado e soará tão fresco e atual como soou em 2009. É nele que os escribas Portner e Lennox conseguem construir algumas das suas composições mais cheias de cor e de vida, mais eternas e memoráveis, como o seu primeiro enorme sucesso até à data – o single “My Girls”. No entanto, não deixam para trás a criancice manhosa de quem nunca se cinge pelo caminho mais fácil: Lennox recorda uma discussão com o pessoal da BBC, que lhe implorava que cortassem o primeiro minuto do dito single, alegando que demorava demasiado a “começar”. Nunca se circunscrevendo às convenções enfadonhas de quem julga saber como se pode ou não fazer música, os Animal Collective conseguiram, com este disco, desenhar um sabor pop de rebuçado que se destaca pelas faixas com força de hino e a fertilidade criativa com os quais muitos apenas podem sonhar. Seria um disco que se descobriria impossível de reproduzir – mesmo pelos próprios.
As repercussões de maremoto com o qual Merriweather Post Pavillion abalou o público pesaram nos ombros da coletiva durante algum tempo. E agora? O que vem a seguir? Após um EP do mesmo ano que conta com uma excelência pop que faz lembrar os restos mortais do gigante anterior – Fall Be Kind, que conta, no single “What Would I Want? Sky”, com o primeiro sample autorizado dos Grateful Dead de sempre – e um excêntrico “álbum visual”, ODDSAC, chegou às prateleiras das lojas de discos Centipede Hz. Três anos depois de Merriweather Post Pavillion, o seu sucessor revelou-se uma desilusão difícil de engolir após o seu disco mais estrondoso à época. Justiça seja dita; qualquer disco que seguisse Merriweather Post Pavillion, tendo em conta o frenesim gerado à volta do álbum da capa com as serpentinas dançarinas, seria recebido com desconfiança por parte dos fãs e da crítica. No entanto, a verdade é que, embora Centipede Hz desvende ocasionais rasgos da genialidade crua à qual os quatro de Baltimore, desta vez, todos presentes na sua feitura, já nos tinham habituado, não está à altura de Merriweather Post Pavillion. Mas demos-lhe mérito: seria praticamente impossível entregar aos ouvidos de quem ouve música um disco que superasse aquele que muitos consideram ser o álbum da década.
Estamos, agora, em 2016. A história dos Animal Collective é difícil de contar até este ponto, é uma roda-viva constante de mudanças de formação, de lançamentos quase sempre anuais, de mais mutações camaleónicas de som e de ambiente do que as que podemos contar. É um romance de capa grossa ilustrado com muita droga psicadélica, sintetizadores mandados fora, recuperados, mandados fora novamente, jornadas individuais pelo mundo da música de cada um dos seus colaboradores, processos de gravação bicudos, resmas de canções que entram logo, entram mais tarde, ou nunca chegam a entrar. Mas é uma história que vale a pena contar. E à qual na próxima sexta, dia 19, se acrescenta um novo capítulo a caneta. É a data do lançamento de Painting With – a primeira vez que ouviremos originais frescos da banda desde o longínquo ano de 2012. Foi um intervalo particularmente penoso para quem já os conhecia, e quem os conheça temerá um disco parecido com os anteriores – incursões por projetos a solo mantiveram a coletiva silenciosa, e já esperámos o suficiente. Se há algo de que podemos ter a certeza, é que nunca nos deixaram entediados: os três singles já disponíveis – “Floridada”, “Lying In The Grass” e “Golden Gal” já fazem crescer água na boca para o que virá, desta vez, destas quatro bocas estrambólicas que durante tanto tempo andaram caladas. E, em junho, chega a hora de (voltar a) ver os quatro em palcos portugueses no NOS Primavera Sound.
Quinze anos é uma longevidade invejável para qualquer banda numa época em que nos fartamos de tudo demasiado depressa, até mesmo para uma banda genuinamente interessante e memorável. Os Animal Collective ultrapassam hoje essa difícil barreira, com a celebração do lançamento do seu décimo LP. E, perguntamo-nos, como é que isto aconteceu? Como é que a banda que mais nas tintas se está para as regras de como agradar ou desagradar o público e que faz o que quer, quando quer, como quer, durou tantos anos, nunca envelheceu, e encontrou sempre novas formas de nos puxar de volta? Nunca conseguiremos oferecer uma razão isenta de subjetividade: a vida às vezes é assim. Mas podemos tentar argumentar que é precisamente este seu gosto por desafiar, por inovar, por pregar truques ao ouvinte, por se reinventar a cada disco e seguir uma metamorfose colorida que nunca mais acaba, de unir os sons tribais de um povo perdido nos livros de história com melodias futuristas saídas de um ano que ainda não conseguimos idealizar, a inocência de puto com a sabedoria de ancião. A verdade é que eles não querem saber, e nós também não: que não há mais nada assim, não há. E duvidamos que haja algum dia. Por isso, só nos resta encolher os ombros e não querer perceber, simplesmente aceitar, e agradecer.
O prazer foi todo nosso: e para sempre será.