“Eu sou inteligente. Sou brilhante. Sou irritante e desagradável. Sou muito criativo e um génio sem limites. Sou, também, curioso e não tenho medo de explorar e fazer perguntas. E acho que as pessoas estão a começar a ver essas boas coisas em mim, não só o irritante e desagradável; começam a dizer «ele não é, de todo, estúpido.»”
Foi desta forma que Tyler Okonma – a.k.a. Tyler, The Creator – se descreveu, na semana passada, no programa Tavis Smiley.
Aos 24 anos, Tyler conta já com um currículo longo (para a idade que tem) no mundo da música: uma mixtape e, contando com Cherry Bomb, três álbuns de estúdio. Junta a isto a liderança do grupo OFWGKTA (Odd Future Wolf Gang Kill Them All), colaborando em muitos lançamentos do coletivo e com o trio BadBadNotGood.
Claro que não seria Tyler, The Creator se não se dedicasse a outras coisas para além da música. Para além desta nobre arte, também desenvolve trabalho nos campos do audiovisual — já realizou vários videoclips e séries —, da moda e do design — é ele quem cria todo o merchandise da OF e todas as capas para os seus lançamentos —, criou uma aplicação, uma revista e confessou estar também a criar mobília, utensílios de cozinha e carros.
Este criador-provocador, natural da Cidade dos Anjos, tem feito por expandir o leque de convidados nos seus álbuns: de colaborações apenas com os colegas da Odd Future (entre os quais Frank Ocean e Earl Sweatshirt) e pontuais outsiders como Erykah Badu, para, neste último álbum, Kanye West, Lil Wayne, Pharrell Williams, ScHoolboy Q, Charlie Wilson ou a superestrela do jazz e do funk Roy Ayers (que terá aceite a colaboração devido a umas transições de acordes “muito fixes”), entre vários outros.
Dando início à exploração dos tais acordes, a primeira canção de Cherry Bomb prende-nos imediatamente ao mesmo. Com um beat pulsante, um riff elétrico e uma raiva nas palavras que nos dá logo vontade de saltar e saber as letras, “Deathcamp” é uma afirmação do sucesso que ser diferente e pensar “fora da caixa” trouxeram a Tyler (“Them blind niggas used to make fun of my vision/ And now I’m paying mortgage and they’re stuck with tuition”) e é um louvar ao pensamento próprio e independente (“In the meantime brainwashing millions of minions/ Leaders of the new school? Ha, I’m in my own school/ And you would never catch me in none of their fucking shin-digs”). Há, ainda nesta música, um verso essencial para entender a música de Tyler: “In Search Of… [disco de estreia dos N.E.R.D.] did more for me than Illmatic [obrigatório disco de Nas]”. A mistura de funk, jazz, soul, hip-hop e rock e a produção que se ouve ao longo de todo o álbum refletem uma audição e um estudo exaustivos do álbum dos N.E.R.D., cuja produção deixa a sua marca em várias canções de Cherry Bomb, tanto que “Deathcamp” lembra quase imediatamente “Lapdance” ou “Rock Star” do dito disco.
Segue-se então “Buffalo”, na qual Tyler expressa sem filtros os seus sentimentos face aos acontecimentos negativos que fizeram notícia e provocaram algum escândalo, entre os quais os anúncios que realizou para a marca Mountain Dew ou a sua prisão após um concerto no Texas, onde foi acusado de incentivar um motim. Com uma instrumentação próxima do hip-hop mais clássico, esta faixa mostra algo que, neste álbum, está bastante presente: os sintetizadores brilhantes, cheios de cor, presença e carregados de uma agressividade estridente, que transportam para ondas sonoras a personalidade irrequieta de Tyler, The Creator.
Em “Pilot” ouvimos uma evolução que faz lembrar a de uma flor: com um início fechado e claustrofóbico, em que sufocamos entre a batida, a voz e o baixo pesados, carregados de reverb, a música vai desabrochando para um final limpo, no qual Tyler mostra a sua enorme sensibilidade musical.
Carregada de uma sonoridade jazzy, com claras influências do funk, da soul e até dalguma bossa nova, é em “Find Your Wings” que temos o prazer de ouvir a fantástica contribuição de Roy Ayers, no vibrafone, e é a primeira vez que ouvimos Tyler a cantar. Esta é, sem dúvida, uma das melhores músicas do álbum, que, na sua calma, é capaz de nos transportar para outro lado quase instantaneamente. Junta uma secção musical quase perfeita, uma mensagem simples, mas muito bela. “Find Your Wings” mostra-nos uma das melhores facetas de Tyler enquanto músico: o compositor. A meio, a canção toma um destino nada esperado mas inexplicavelmente certo, como se a transição não pudesse ter ocorrido de outro modo. Aí, entende-se porque razão um colosso como Roy Ayers, sem nada a provar a ninguém, terá aceite esta colaboração com um “miúdo” de 24 anos.
Depois deste momento de paz, somos bombardeados pela retorcida e distorcida “Cherry Bomb”, na qual Tyler segue agressivamente por um rap abafado pela instrumentação pesada, chegando então a “Blow My Load”. Uma canção simples, onde os sintetizadores conduzem a melodia até esta ser interrompida por um orgasmo, que então dá início a uma segunda parte que lembra um pouco “These Walls” de Kendrick Lamar.
Relaxamos e entramos na calma “2Seater”. A construção descontraída da música, que assenta na repetição de dois acordes no piano e do sample, cheio daquele hiss de cassete, de uma bateria simples, leva-nos lentamente, qual simpático 2CV, por uma qualquer estrada costeira fora, ao pôr do sol. Passando por uma belíssima ponte, em que cordas e sopros mantêm a melodia, somos guiados até um local onde apenas as cordas, um baixo e a voz de Tyler (a cantar!) ecoam. Cheios das cores vivas deste final de dia, somos contemplados com a visão hipnotizante dos cabelos da nossa amada a voar e a ondular enquanto o vento flui por entre eles, enquanto o jizz jazz de Mac DeMarco toca nas colunas do carro. Pelo menos, é essa a imagem que Tyler nos transmite nesta hipnotizante segunda parte da música. Este sonho do final de uma tarde de verão é interrompido por um borbulhar estranho e por uma voz zangada. É o início de “The Brown Stains of Darkeese Latifah Part 6-12 (Remix)”, que dá lugar a um beat violento e uma música que faz lembrar os melhores momentos de Goblin, com o contributo de ScHoolboy Q.
Chega, então, um dos momentos mais altos do álbum: “Fucking Young / Perfect”. Com uma sonoridade a piscar um olho a Stevie Wonder, a música cresce a partir de um início em que a voz de Tyler, acompanhada apenas por uma guitarra, canta a história de um amor proibido. É nesta faixa que vemos Tyler a experimentar mais com a sua voz, já que é quase toda cantada por ele, sendo acompanhado por um coro de luxo, composto por Chaz Bundick (Toro Y Moi), Kali Uchis e o grande Charlie Wilson. A secção vocal, muito bem montada, vai-se juntar ao instrumental, acabando por mostrar uma faceta que conhecemos muito pouco a Tyler: a sua enorme sensibilidade pop. Já a tínhamos vislumbrado em músicas mais antigas, como “Blow”, “She” ou “Answer”. Mas nesta música ele agarra-a e mostra-a ao mundo sem medo. E o resultado são as guitarras brilhantes, sintetizadores e teclados que encantam e cores que estão em todo o lado na canção e rebentam a cada nota tocada.
É junto a este excelente momento musical que encontramos a melhor música de Cherry Bomb. O seu nome é “Smuckers”. A receita parece simples: sopros, cordas, teclados a criar texturas que, a cada audição, nos dão a sensação de uma nova experiência e, por fim, versos honestos, com a devida dose de agressividade. Mas montar tudo isto de uma forma não é para qualquer um. A juntar a este talento natural para a orquestração, convidados como Kanye West e Lil Wayne fazem a música tomar outras proporções, catapultando a qualidade desta canção para um nível inatingível neste álbum.
Passando por “Keep da O’s” e “Okaga, CA”, chegamos à última música do álbum, “Yellow”. Com uma estrutura semelhante à faixa que a antecede, esta apresenta-se como um perfeito “até já”, em que a música segue lentamente até desaparecer como o sol que entretanto se vai pondo. É com este clarão de cor, com este sabor a verão infinito, que o álbum, muito bem, termina.
Cherry Bomb é, portanto, um álbum que nos conta muitas histórias e que, sobretudo, marca mais um ponto na constante evolução de Tyler, the Creator. É um álbum original, inteligente, desagradável e criativo, como aquele que o pensou e orquestrou. É mais uma fase na interminável metamorfose deste artista nunca contente consigo próprio e sempre em busca de mais. E só ganha com essa insatisfação: Cherry Bomb é dos seus melhores álbuns até à data, apenas equiparável com o enorme Wolf.