A vida entre duas realidades. Ser de um lado e do outro mas, ao mesmo tempo, não ser de nenhum. Se há coisa que Afro Fado nos diz – entre muitas outras -, é que o seu talentoso autor, Slow J, é um homem dividido.
“Já nasci preso / Eu branco e eu preto / Eu pranto e eu tenso”, diz-nos logo no início de “Nascidos & Criados”, belíssima canção que partilha com Teresa Salgueiro e que cristaliza muito bem esta inquietação. Filho de mãe portuguesa e pai angolano, entalado entre um legado europeu e outro africano, João usa este seu terceiro disco de originais para questionar o seu lugar num mundo ferozmente polarizado onde tanto a apropriação cultural, num extremo, como a globalização, noutro, ganharam um peso Robespierriano de repúdio. Através de um hip hop trapezista, capaz de caminhar entre o pop e o “underground”, Slow J junta à sua própria viagem filosófica – “Terra” também a mostra, por exemplo, assim como “CorDaPele” – um “fado com jindungo” onde a guitarra portuguesa sobrepõem-se à eléctrica (que tanto caracterizou trabalhos anteriores) num casamento com drum kits, batuques e demais jinga que pisca o olho a géneros como a Kizomba. É a Amália a receber o Eusébio, a metáfora perfeita que serve de capa a este disco – foto que, por curiosidade, foi encenada a pedido do realizador francês Nicolas Ribowski, cerca de dois meses antes do 25 de Abril de 1974, a propósito do documentário “Mon pays le voici: Amália Rodrigues présente le Portugal”.
Ao contrário de trabalhos anteriores como The Art of Slowing Down ou You Are Forgiven, este instrumental criolo eleva-se, sobrepondo-se ligeiramente às palavras e à métrica que, apesar de continuarem a ser muito acima da esmagadora maioria dos rappers em Portugal, rendem-se a lugares mais comuns como o recurso aos estrangeirismos do “lit” e do “fuck it”. E claro, também há baladas, como a bonita “Sem Ti”; canções a puxar à bazófia como “Fogo” e bangers de fazer voar cuecas como “Where U @”. Numa era onde o rap em Portugal parece estar congelado na contagem de “hoes”, na cansada lengalenga das drogas ou no choradinho dos OGs vs Fakes, é por demais entusiasmante ver outras conversas surgir dentro de um beat e de uma rima. Substrato e inteligência, por muito que quase seja obrigatório caracterizar Afro Fado como o disco mais pop de Slow J até agora.
Questionar o wokismo e a boçalidade dos que insistem em mandar pessoas para a sua terra. Tentar perceber o lugar de um jovem feito de dois universos e que tem de existir dentro de um terceiro, com demasiadas feridas por sarar e demasiados tabus para quebrar. Ignorar o falso sagrado e juntar às lágrimas do fado o calor africano. Tudo isto mora em Afro Fado e existe despido de paternalismos. O rapper e produtor setubalense fala com sinceridade, olha-nos nos olhos e comunica com a abertura de quem não pertence a nenhuma facção (apenas àquela que a sua inteligência cria) e só quer existir sem ter de ser ou preto ou branco, ou fadista ou rapper.