“Antes de Presley, não havia nada”, diria John Lennon, dramatizando o impacto deste disco.
Na América segregada dos anos 50 também a música estava dividida: a rádio, o mercado discográfico, o circuito de concertos, tudo era separado em duas cores de pele. Mas há sempre quem veja mais longe e Sam Phillips era um desses visionários. Apaixonado por música negra desde miúdo, palmilhava o sul de lés a lés em busca de novos talentos. E ia dizendo para os seus botões: “quando encontrar um branco que cante como um negro vou ganhar um milhão de dólares”.
A sua profecia cumpriu-se quando um camionista de 19 anos, nascido e criado no Mississippi profundo, bateu à porta da Sun Records, corria então o ano de ’54. Nas primeiras audições, Phillips ainda não estava muito convencido. Tudo mudou quando, do nada, Elvis lembrou-se de cantar o blues “That’s All Right (Mama)”, pegando fogo à guitarra de Scotty Moore, incendiando o contrabaixo de Bill Black, e, pronto, lá estava a Sun a arder, e o mundo prestes a mudar.
Mesmo assim, foi o diabo para “That’s All Right” passar em Memphis: para as rádios “brancas” era demasiado rhythm & blues, para as rádios “negras” demasiado country era. Um DJ mais ousado lá concedeu em rodar o disco. Qual não é o seu espanto quando recebe dezenas de chamadas, uma horda enlouquecida clamando pela música outra vez. “That’s All Right” torna-se um êxito regional e impulsiona toda uma cena rockabilly à volta da Sun Records: de Carl Perkins a Johnny Cash, de Roy Orbison a Jerry Lee Lewis.
Nos concertos pelo sul afora, a reacção do público era incrível, as raparigas apertando muito as pernas com a excitação, e os rapazes furibundos com a concorrência desleal. O vampiro Colonel Parker, farejando a léguas o odor doce a dinheiro, tornou-se seu agente em ’56, transplantando-o da independente Sun Records para a major RCA. Num estúdio com outras condições, gravou-se, sem mais delongas, novos temas, cada um melhor do que o anterior. E zás-trás: com a ajuda de sobras de gravações da Sun Records, o seu primeiro longa-duração estava pronto.
Elvis Presley foi o primeiro LP de rock’n’roll a liderar o top de vendas e o primeiro a facturar o número redondo de um milhão de dólares. Esta nova música já borbulhava há uns anos mas só agora extravasara como um copo cheio. “Antes de Presley, não havia nada”, diria John Lennon, dramatizando o impacto deste disco. Sem ele não haveria Sgt. Pepper ou Nevermind. Nem tu, nem eu…
O álbum tem duas velocidades, ou rockabillys frenéticos ou baladas letárgicas, morte ao meio-termo; a nova e a velha pop coexistindo lado a lado, como se Elvis ainda não soubesse bem se queria ser o Little Richard ou o Dean Martin. A nossa predilecção vai para as rockalhadas hiper-activas, captando, na perfeição, os ares do tempo. Só “Blue Moon” se destaca das outras tépidas baladas, pela sua simplicidade radical e intimidade fantasmagórica. No final, o seu falsete sofrido deixa-nos sempre com pele de galinha.

A guitarra de Scotty Moore tem sempre o cuidado de não se sobrepor à voz de Elvis, oferecendo bonitos contrapontos melódicos, qual Johnny Marr do rockabilly. Às vezes, parece que Scotty tem três braços, ouvindo-se melodia, linha de baixo e acordes ao mesmo tempo. É o seu estilo de dedilhado sem palheta – roubado aos virtuosos da guitarra country Merle Travis e Chet Atkins – que lhe liberta os dedos para tanta coisa. A Gibson de corpo inteiro faz o resto, com o seu timbre bonito a madeira e o seu eco misterioso, tão definidor do rockabilly.
A secção rítmica não lhe fica atrás. Bill Black não toca contrabaixo, ataca-o, batendo nas cordas, slap!, slap!, como quem batuca uma percussão. A bateria de DJ Fontana, simples e precisa como uma máquina, dá aquela batida lixada em contratempo, que põe contabilistas paraplégicos a dançar.
Mas por mais atributos que os Blue Moon Boys tenham, é sempre a voz selvagem de Elvis que está no centro, uma voz tão negra que Fats Domino parece, de repente, branco. Num tempo em que só havia duas pistas de gravação – uma para voz e instrumentos, e a outra como engenhoca primitiva de eco -, só vozes pujantes como a de Elvis conseguiam fazer-se ouvir. Pouco importa se escrevia ou não as suas canções, era um intérprete extraordinário. Amália também não as escrevia, e daí?
O disco abre com a efervescente “Blue Suede Shoes”, leve e satírica no original de Carl Perkins, contundente como um ultimato na versão de Elvis, como se nos avisasse: “os meus sapatos novos de camurça azul são a minha própria vida, atreve-te a tocar neles…” Um manifesto de uma geração, avisando a velha guarda que a nova cultura juvenil não é negociável.
“I Got a Woman” de Ray Charles, e “Tutti Frutti” de Little Richard, continuam no mesmo ritmo alucinante, o arrojo sexual do rhythm & blues a chegar finalmente aos miúdos brancos. A sociedade puritana de então não gostou, pregando inflamadas homilias contra as ancas pecaminosas do rapaz.
A forma displicente em como Elvis murmura “One Sided Love Affair” é uma declaração de guerra a Tin Pan Alley e às suas rigorosas convenções, um grito de proclamação da nova ordem.
Os sectários acusam Elvis de apropriação cultural, uma crítica cheia de mal-entendidos. Em primeiro lugar, Elvis não se limitou a decalcar o rhythm & blues; foi mais longe, ajudando a inventar uma linguagem nova, o rockabilly, fundindo essa tradição com a do country. Em segundo lugar, a música não é propriedade de ninguém, pertence a toda a humanidade, e evolui, justamente, através do diálogo entre diferentes estilos. A verdade é que Elvis foi uma bênção para os músicos negros, por ter derrubado o muro que separava o rhythm and blues dos consumidores brancos. Elvis juntou, não dividiu. E, por isso, é o maior…