Estrada da Luz foi um fenómeno estranho, um disco instrumental do nosso pioneiro da “world music” que foi um sucesso comercial e de crítica.
Rão Kyao é um caso único no panorama nacional português. Músico com formação no jazz mas fascinado com o fado, a música portuguesa e as suas origens, nomeadamente as influências árabes e indianas, foi um verdadeiro globetrotter, tocando por todo o mundo e gravando com gente de todo o lado, da China a África, passando pela Índia, onde estudou.
Começou, na adolescência, pelo saxofone e pela flauta de bambu, mas foi esta última que o arrebatou e que o marcou para sempre. Até hoje, quando pensamos em Rão Kyao (de seu verdadeiro nome João Gorjão Jorge), visualizamo-lo sempre de lábios na flauta.
Foi um pioneiro em muita coisa, cabendo-lhe a honra de ter gravado um dos primeiros discos de jazz escritos e tocados por portugueses (a doutrina diverge se foi realmente o primeiro), o histórico Malpertuis, de 1976. E fazia e buscava incessantemente a world music quando o termo ainda nem tinha sido inventado.
Em Portugal, nos anos 80, era um nome muito conhecido e muito passado na rádio, sendo dessa década os seus discos mais bem sucedidos comercialmente, como Fado Bailado (1983) ou Danças de rua (1987). Entre os dois há este Estrada da Luz, em 1984, que o consagrou definitivamente como um dos nomes-chave da música portuguesa dessa década.
Num tempo em que um disco instrumental podia chegar ao galardão de platina, a grande responsável pelo sucesso do álbum foi o seu single e primeiro tema, a inesquecível “Canção da Manhã”. É um tema rápido, feliz, a transbordar luz, alegria e a energia de um novo dia que começa. O mesmo pode ser dito de “Tróia”, que abre o lado B do disco no mesmo registo.As rádios adoraram e para mim, que na década de 80 me começava a fazer gente, estes dois temas ficaram como necessária banda sonora desses tempos.
Mas este é um disco heterogéneo. Logo a seguir, temos “Fado da Chegada”, em que essa música tão portuguesa é o fio condutor e a base para uma deambulação onde cabe todo o mundo. Em “Tu”, outro exemplo, há guitarra portuguesa, sim, mas em que temos pela frente quase só uma base, um pretexto para uma viagem lenta e exploratória em que a flauta e as cordas nos vão conduzindo. Quando tanto se fala de novo fado, e de quantas vidas tem o fado, está tudo aqui, há quase 40 anos.
Temos ainda as inescapáveis “Ondas” ou “Savana” (esta com um baixo delicioso), com ecos árabes e indianos por todo o lado, música enérgica e vigorosa. Ou “Canção do trabalho”, cujo início nos remete para o chamamento à oração da mesquita, casado na perfeição com um coro português até à medula, a ponte perfeita, o elo perdido, entre as nossas origens e aquilo em nos tornámos.
“Mil e uma noites”, o tema mais longo de todo o disco, é uma lenta estrada que se vai revelando à nossa frente, e onde a paisagem vai mudando à medida que caminhamos: desde o chamamento dos beduínos à guitarra portuguesa, passando por uma secção intermédia toda ela jazz.
O disco fecha com duas versões do tema “Nascente”. Na primeira, só Rão e a sua flauta, na segunda as cordas mandam, instalando um ritmo hipnótico e oriental.
Estrada da Luz não é o único disco de Rão Kyao merecedor de destaque mas é uma boa porta de entrada para um mundo colorido, brilhante e solidário. Além da mestria da composição de Kyao, também ajuda contar com nomes como António Pinho Vargas no piano, António Chainho na guitarra ou Mário Barreiros na bateria. Há que dizer, contudo, que o conjunto acaba por sair algo penalizado por uma certa produção muito típica dos anos 80, que talvez nos soe demasiado plastificada para os nossos ouvidos de hoje.
O que é estranho, e uma injustiça que urge corrigir, é o facto de o nome Rão Kyao ser hoje em dia pouco falado, pouco estudado, pouco discutido e, sobretudo, pouco ouvido. Agora que, graças à tecnologia e às modas, se ouve (felizmente) tanta música que não pop ou de matriz anglo-saxónica, não deixa de ser bizarro que este pioneiro não seja mais proeminente. Um virtuoso que nunca foi elitista, um músico treinado mas que almeja o popular, um português que não apenas quis procurar as raízes históricas e étnicas da música portuguesa mas colocou mesmo essas diferentes linguagens em comunicação directa.