Joni Mitchell regressa a L.A. com todos os seus pontes fortes e um arsenal de novas armas: uma paleta alargada pelas influências jazz e country e uma energia e uma confiança nunca antes vistas.
Na ressaca do sucesso de Blue, Joni Mitchell teve o que se pode chamar de esgotamento nervoso. Enquanto aumentava o número dos seus fãs, ela duvidava cada mais de si própria, do valor do que dizia, se estava ou não a conseguir ser fiel à sua voz e ao seu talento. Isso e algumas separações difíceis (de James Taylor e Jackson Browne), que davam boas canções (a Taylor Swift não inventou nada) mas que passavam uma factura emocional acabaram por forçar Mitchell a cancelar muitos espectáculos e, de certa forma, retirar-se. Uma das maiores estrelas da altura saiu de Los Angeles e refugiou-se numa cabana no meio da natureza, sem energia eléctrica e sem companhia. O resultado foi For the Roses, de 1972, um bom disco mas que tinha a impossível tarefa de suceder a Blue.
Em 1973, pela primeira vez, não houve um disco novo de Joni Mitchell, enquanto ela estava a tratar de si própria e à procura de um novo caminho que a tornasse mais confortável. Depois dessa viagem de autodescoberta, o disco seguinte representa quase como que um renascimento. Esse álbum é Court and Spark, e marca o início de uma nova fase na carreira da canadiana, em que a folk é apenas mais um elemento num conjunto cada vez mais eclético, mais solto, mais aventureiro.
A base para esse renascimento foi Los Angeles, a cidade que Mitchell amava e da qual desconfiava em igual medida, e para onde regressou. O click para o disco e para esta nova fase foi a entrada da compositora no mundo do jazz, através da sua colaboração com o grupo L.A. Express. Este era composto por uma série de craques que, mais do que um domínio total do seu instrumento, pensavam a música de forma diferente dos habituais colaboradores mais folky de Mitchell. Ficou famosa uma noite em que Mitchell e o seu co-produtor Henry Lewy assistiram a um concerto dos L.A. Express num pequeno clube. A ideia era recrutar um baterista para trabalhar no disco, mas Joni saiu de lá com a banda toda.
O arranque não foi fácil, com a super-controladora Mitchell a ter dificuldade em dar aos músicos a liberdade de que eles necessitavam para poderem entregar todos os seus poderes. Mas, de repente, as peças encaixaram, e Joni viu abrir-se à sua frente uma nova e excitante estrada.
Court and Spark não é, de todo, um disco de jazz, atenção. É ainda um disco de canções com estrutura clássica e linear (bom, dentro da inventividade que Mitchell tem sempre). Aquilo que muda é aquilo que cabe dentro dessa estrutura, como um mesmo aposento pintado com cores totalmente diferentes. A grande mudança é que Mitchell, com aqueles músicos à mão, estava finalmente confiante para explorar mais profundamente os matizes que a sua música pedia. Com o seu talento e imaginação e uma banda capaz de a entender e acompanhar, o caminho estava aberto.
Isto significa que, além da folk e da pop, este é um disco no qual cabem muitas mais coisas, sem que nunca pareça atafulhado ou com elementos a mais. Há uma bateria mais criativa, há um baixo mais proeminente, há saxofone, há guitarra elétrica, há teclados eléctricos que dão uma nova textura a muitos temas.
Se este é o pano de fundo, as canções voltaram a estar à altura da ambição.
A faixa-título, que abre o disco, fala de um daqueles amores súbitos, desesperados, arrebatadores, mas em que o apelo pela liberdade é mais poderoso que o desejo de ser amado, tema que protagoniza também o tema seguinte, “Help Me”. Só com duas músicas, percebemos que estamos em território diferente, seja pela discreta slide guitar da abertura ou pela magnífica libertação sonora da segunda metade de “Help Me”, com a guitarra eléctrica e o baixo a comandarem as operações.
Segue-se “Free Man in Paris” que, juntamente com “Help Me”, talvez seja a música mais conhecida de Court and Spark. É um tema leve e que nos coloca bem dispostos, numa canção sobre David Geffen e as pressões da indústria discográfica, e o consequente desejo de liberdade para apenas andar na rua sem preocupações nem telefonemas de clientes.
Em “People’s Parties”, Joni volta a um tema recorrente, o mundo plástico de Hollywood e das pessoas de sucesso. Neste caso, a letra leva-nos a um jantar cheio de estrelas, grandes e pequenas, que forçam sorrisos e poses toda a noite. No meio do turbilhão, a narradora reconhece – não sem algum pesar – que não pertence ali, que não consegue deixar de pensar demasiado e apenas divertir-se, limitada pelas suas inseguranças e inadequação.
Segue-se uma espécie de tríptico amoroso, ou mais de amor perdido. “Same Situation” é alegadamente sobre a relação de Mitchell com o actor Warren Beatty, que ia deixando atrás de si toda uma corte de mulheres seduzidas e depois descartadas, em busca do troféu seguinte. Em “Car on the Hill”, a inspiração terá sido o cantor Jackson Browne, por cujo carro a narradora espera ansiosamente, à janela, sem que ele volte. Aqui, destaca-se o sabor jazzístico e swingante, sobretudo da segunda metade da canção. Nunca havíamos visto Joni tão solta, musicalmente.
O mesmo tema amoroso, e uma ainda maior ambição musical, surgem em “Down to You”, sobre alguém que mascara a sua irresolúvel solidão com a busca por conquistas, na canção mais longa de todo o disco. Esta passa por várias fases, da simples voz e piano, no início, a um toque singelo de gospel e a arranjos mais barrocos na lindíssima parte final, quase como uma suite clássica. Neste temas à volta do amor, aquilo que fica é a escrita de um ponto de vista naturalmente feminino, pouco comum na época, que não esconde as inseguranças mas que as identifica também como resultado da pressão de uma sociedade que lhes atribuiu um papel limitado e redutor.
O ambiente fica mais leve com o sabor country de “Just Like this Train”, que fala novamente de amor e de um cadastro de uma fila de amantes que acabaram mal, e com o boogie bem disposto de “Raised on Robbery”, que pode facilmente ser colocada na categoria de um certo rock’n’roll.
O disco fecha com dois temas sobre terapia, que podem ser lidos como duas faces da mesma moeda. “Trouble Child” é sobre uma pessoa a partir-se, a precisar e a querer se reerguer e reconstruir e a luta que isso constitui; no fecho temos a única cover do disco, com “Twisted”, original de Annie Ross e Wardell Gray, numa versão totalmente e assumidamente jazz. É a primeira vez que vemos Joni tão alegremente entregue a este registo, no qual se sente tão confortável e que viria a explorar muito mais a fundo nos anos seguintes. Se “Trouble Child” é uma confissão honesta de fraqueza, “Twisted” é o oposto, uma glorificação humorística de alguém que se sente diferente dos outros, talvez louco, sim, mas sem arrependimentos. Humor, sim (até aparece brevemente a dupla cómica Cheech & Chong), mas talvez com um fundo de verdade e da forma como Mitchell se via: “My analyst told me / That I was right out of my head / But I said dear doctor / I think that it’s you instead / Because I have got a thing / That’s unique and new“.
Court and Spark é um dos discos mais celebrados de Joni Mitchell, e com razão. É onde encontramos a mesma profundidade emocional de Blue mas também uma renovada energia, uma vontade de, reconhecendo as durezas e os traumas do passado, seguir em frente e viver a vida. Folk, arranjos e sensibilidade jazz e subtis e excelentes toques country-rock fazem deste um trabalho que nos apetece revisitar, uma e outra vez.