Uma amiga minha sofre horrores desde miúda por causa do problema da comunicação. Segundo ela, cada um de nós é um mistério indecifrável e nenhum diálogo ou sequência de gestos conseguem alguma vez atravessar a parede invisível da nossa solidão. Há muitas circunstâncias em que a minha céptica amiga tem razão mas em 24 de Fevereiro de 1969, na prisão estadual de San Quentin, Johnny Cash entendeu a sua audiência e a sua audiência entendeu Johnny Cash. O milagre da comunicação aconteceu.
Sempre gostei das pessoas perdidas, dos que não se encaixam. Talvez por isso tanto me fascine a personagem Johnny Cash: o devoto viciado no pecado das anfetaminas, o sulista conservador que amava as minorias, o activista político que nunca votou, o bom cristão que sempre cobiçou a mulher alheia, o bom filantropo que tanto magoou os mais perto de si. Desde miúdo que uma sombra maldita pairou sobre os seus passos: a morte do irmão perfeito, a culpa da sobrevivência, um pai que lhe atira à cara “porque não foste tu?”, pegajosos fantasmas que nunca mais deixariam de o atormentar. Na música encontrou sempre um bálsamo para as suas dolorosas feridas. De ouvido sempre colado ao rádio, tanto jurou que um dia seria cantor que em cantor se tornou. E pondo nas canções um pouco da sua dor ela amainou um pouco. Já a rebeldia e a atracção pelo abismo atravessariam toda a sua vida.
Nunca ninguém na música country tinha levado tão longe o tema da escuridão. Uma obsessão perseguiu desde o princípio o seu imaginário artístico: o fora-da-lei e a prisão enquanto seu maldito habitat natural. Uma das suas primeiras músicas chama-se justamente “Folsom Prison Blues”; e um dos seus versos é particularmente inquietante: “I shot a man in Reno just to watch him die.” O vazio e a alienação de um homem levados aos seus chocantes limites.
O fora-da-lei é o protótipo do sujeito que não se encaixa, daí a sua eterna identificação. Quando pela primeira vez tocou numa prisão sentiu-se estranhamente em casa. Nunca antes tinha tido uma reacção tão intensa da sua audiência. Os espectáculos repetiram-se até que em 1968 acabou por captar em fita um desses famigerados concertos. Nasceu assim o álbum At Folsom Prison, muito bem recebido pela crítica e pelo público. Um ano depois surge a “sequela”, desta vez por detrás das grades de San Quentin. Mal sabia ele que este disco seria a sua obra-prima.
A prisão de alta segurança de San Quentin é a única em todo o estado da Califórnia a ter corredor da morte. Homicídio, violação, assalto à mão armada – são algumas das suas sombrias portas de acesso. Aqui ninguém cumpre pena por ter deixado o carro estacionado em cima do passeio. Cerca de mil reclusos aguardam expectantes a chegada do seu herói Johnny Cash. Em seu redor, cem guardas vigiam o local empunhando as suas nervosas espingardas. O ambiente é tenso. Já houve tentativas de fuga, polícias mortos, retaliações na solitária e antecipações na câmara de gás. Não é invulgar ocorrer um motim e, acontecendo-o agora, uma coisa é certa: não haveria armas suficientes para abater tanta gente.
Cash entra, de camisa azul, a mesma cor dos uniformes prisionais. Antes de subir ao palco, faz questão de apertar a mão aos detidos da linha da frente, como quem cumprimenta velhos amigos. Já em cima do estrado, ouvem-se as palavras que ficariam célebres: “Hello, I’m Johnny Cash.”
Se olharmos para o concerto com uma boa dose de paranóia ocultista depressa deciframos uma ordem escondida no alinhamento: amor, crime e redenção, peça em três andamentos. Não o estranhamos. Na obra de Cash há sempre este jogo de contrastes: deus e o diabo jogando às cartas no saloon das suas canções.
Amor, primeiro andamento. Com a sua voz grave e possante (épica mas vulnerável), Cash começa por entoar canções tristes de amor como “Big River” e “I Still Miss Someone”. Estando ali tantos corações destroçados (os muros altos de San Quentin não são os mais lovers friendly da cidade), a ressonância nos seus espectadores não poderia ser maior. Cash parte depois para uma canção de amor feliz, a icónica “Walk The Line”. Mas o tema é mais complexo do que parece. Se à sua superfície irradia a pureza de uma paixão redentora, no seu âmago esconde-se a vertigem da perdição. O seu subtexto reza assim: “porque te amo resisto às tentações: das mulheres, da bebida, dos speeds“. Se é verdade que no início da sua carreira Cash fez das tripas coração para não sucumbir ao “pecado”, também é verdade que a negação é quase sempre uma afirmação. Poucos passos separaram a sua pureza inicial da sua posterior “queda no mal”. A carne é fraca e mais fraca fica ainda na solidão da vida de estrada. Como dizer não ao diabo quando ele se esconde, sumarento, debaixo das saias das mais lindas groupies?
A linguagem moralista não aparece por acaso. Ao contrário da geração rock dos anos sessenta, em aberta confrontação com a moral judaico-cristã, a geração rockabilly dos anos 50 – de Elvis a Carl Perkins, de Jerry Lee Lewis a Johnny Cash – é profundamente cristã, em eterno conflito interior entre os mandamentos de Deus e os ínvios caminhos do rock’n’roll. O pecado, por mais inescapável que seja, tem assim para Cash o travo sempre amargo da culpa. “Que direito tem então o sistema penal de castigar tão severamente aquela gente se no fundo todos nós somos pecadores?”, pergunta Cash às cordas da sua viola. “O fogo da consciência e o chicote do remorso não serão suficientes?”
Mas o clímax do primeiro andamento surge em “Darlin’ Companion”, quando June Carter Cash sobe ao palco para um dueto com o seu marido. June é uma mulher bonita e o número carrega uma evidente tensão sexual, ainda para mais quando dentro das paredes de San Quentin as mulheres são um cruel sonho intangível. June, uma veterana nestes duetos, está invulgarmente tensa. Com todos aqueles olhos voluptuosos a morderem o seu corpo, e sabendo que alguns daqueles homens são perigosos violadores, June apenas anseia que a canção acabe o mais rapidamente possível. A passagem para o andamento seguinte surge com toda a naturalidade.
Crime, segundo andamento. Canções como “I Don’t Know Where I’m Bound”, “Starkville City Jail” e “Wanted Man” são agora disparadas à queima-roupa contra o nosso peito. O jogo de espelhos entre Cash e o seu público atinge agora o seu auge. Cash fala cada vez mais entre as canções. Toda a sua atitude em palco tem uma clara intenção: mostrar-se como um igual, um fora-da-lei por direito próprio. Quando menciona várias prisões faz questão de não se esquecer de “El Paso”, simpático estabelecimento prisional junto ao México onde passou uma vez uma noite por tentar atravessar a fronteira com mais de mil comprimidos de anfetaminas escondidos na sua viola. O escândalo fez manchete em muitos jornais e, se na altura a sua carreira passou um mau bocado, Cash tira agora pleno proveito da sua má fama.
Em “Starkville City Jail”, conta-nos que passou uma noite na dita prisão (mais trinta e seis dólares!) por apanhar flores às duas da manhã. A punch line é irresistível: “nem imagino o que me teriam feito se tivesse apanhado uma maçã”. Naquele contexto, com um público pejado de perigosos ladrões e assassinos, a ironia da inocência do seu crime é ainda mais deliciosa. Cash conquistou inteiramente o seu público. “É um dos nossos”, escutamos nós no calor cúmplice das suas ovações.
Mas o clímax da noite surge com “San Quentin”, uma canção onde Cash se coloca na pele da sua audiência, tentando imaginar o ódio que aquela prisão deve gerar às suas gentes. A aclamação do público é agora transbordante e a inquietação dos guardas-prisionais atinge o seu máximo. Mas de maneira nenhuma Johnny alivia a tensão. Pelo contrário, continua a esticar a corda, anunciando que vai repetir novamente a canção. E para aguçar ainda mais a provocação, Cash pergunta, malicioso: “if any of the guards still speaks to me, can I have a glass of water?” Um guarda entrega-lhe o dito copo de água, visivelmente incomodado, e ainda mais o fica quando centenas de detidos o vaiam em uníssono. A sala está agora ao rubro e, cavalgando a onda de excitação, Johnny canta “San Quentin” pela segunda vez. O concerto está a ser inacreditável mas cada vez mais os guardas receiam que este descambe num motim.
O segundo momento da noite acontece com “The Boy Named Sue”, um hilariante blues falado, com contornos edipianos, em que um durão pretende vingar-se do maldito pai que lhe desgraçou a vida dando-lhe o nome de Sue. A história é de tal forma engraçada, e Cash declama-a de forma tão convincente, que o disco At San Quentin tem finalmente consigo o ingrediente que lhe faltava: um single irresistível para o promover massivamente.
Redenção, terceiro andamento. Canções gospel como “There’ll Be Peace In The Valley” e “He Turned The Water Into Wine” iluminam por fim a escuridão. Ao nosso olhar europeu e secular, há algo de profundamente bizarro em encerrar um concerto para serial killers e demais escuteiros com hinos religiosos. Mas a América é um continente à parte onde ninguém estranha que o psicopata que massacrou cem pessoas no sábado à noite não falte depois à missa de domingo de manhã. Como Cash luta consigo próprio procurando a voz de Deus, impinge a mesma receita aos seus “irmãos”. Estranhamente, funciona. De repente, os criminosos mais perigosos do Estado da Califórnia encontram a paz na luz do senhor.
At San Quentin tornou-se um sucesso retumbante nos Estados Unidos, vendendo mais do que os próprios Beatles. 1969 foi o ano de Woodstock pelo que é natural que a sua mensagem anti-autoritária tenha sido bem acolhida pela contracultura juvenil de então. O curioso é que o álbum vendeu também que nem ginjas nos sectores mais conservadores da sociedade americana. O voyeurismo é uma pulsão muito forte, e talvez ainda mais forte no seio das domingueiras famílias da classe média, que tanto gostam de apimentar as suas vidas com o consumo – via sofá – do exotismo alheio. O disco foi então aclamado sob o signo da mais promíscua mixórdia: jovens e velhos, progressitas e conservadores, sulistas e yankees, democratas e republicanos, hillbillies e rockeiros, todos quiseram dar a sua espreitadela pela fechadura de San Quentin, deleitando-se com o rocambolesco submundo de uma das mais perigosas prisões do mundo.
Gosto de pensar porém que há muito mais em San Quentin do que a mera reportagem à National Geographic, do tipo “saiba todos os segredos da última tribo de índios canibais da Amazónia”. O que me fascina neste grande disco é a sua verdade humana, um instagram que capta a luta obstinada de um homem contra os seus poderosos demónios interiores, tentando ajudar os demais underdogs a fazerem o mesmo. Pouco que me importa que eu esteja nas antípodas das suas mitologias religiosas e moralistas. Acredito no homem por detrás da sua fé e isso basta-me. Um homem sombrio e misterioso, rebelde e corajoso, solidário e verdadeiro. No final, nem deus nem o diabo ganharam o jogo. Ganhou a humanidade.