Sérgio Godinho, nascido em 1945, no Porto, podia ter sido muitas coisas. A vida empurrou-o para as canções, e através delas chegou finalmente a ser essas muitas outras coisas. Poeta, cantor, músico, sim; mas também actor, realizador, escritor. Um verdadeiro homem dos sete instrumentos, como a canção de Pré-Histórias, o seu segundo disco, de 1973.
A sua vida de criança foi passada numa casa cheia de música. A mãe tinha o curso superior de piano e era comum ouvi-la a tocar trechos clássicos, o mesmo acontecendo com o seu Tio Carlos, cujo repertório era mais alargado, indo aos boogie-woogies americanos. Em disco, também havia muita coisa, desde os clássicos Sinatra ou Glen Miller, passando pela chanson francesa ou pela música brasileira. Também o jovem Sérgio, o “irmão do meio” de três rapazes, foi aprendendo música. A sua estreia não oficial em disco, aliás, surge dessas aulas de piano, quando a sua professora o levou à Ideal Rádio para gravar umas peças de piano para oferecer à mãe deste.
A música foi sempre algo de muito presente, quando a descoberta desta não era exactamente fácil. Das idas ao Cinema Nun’Álvares ficou o fascínio com figuras como Elvis ou Bill Halley, também por influência de Fernão, o irmão mais velho. Depois vieram os Beatles e os Stones, que causaram grande impacto no jovem Sérgio, bem como os Kinks. É dessa altura o início da guitarra, numa altura em que o rapaz absorvia tudo (algo que se viria a notar no seu percurso musical não-exclusivista): fado, canções italianas, cha-cha-chas, ié-ié, boleros e bossa nova. Do Brasil e desse movimento, à boleia dos mestres João Gilberto e Tom Jobim, Sérgio foi tentando decifrar os truques, as harmonias e acordes, e o cuidado das letras, mostrando que o português também se encaixava numa canção mais ligeira que o fado. Quando Zeca Afonso começa a afirmar-se, foi a peça que faltava.

No final da adolescência, no Porto, Sérgio ia tocando em vários grupos, já com a viola como instrumento preferencial, imitando os seus ídolos. Da mesma forma, tomava parte activa na vida académica, tendo nessa altura as primeiras experiências de estar em palco, nomeadamente em pequenas peças. Às portas da universidade, o rapaz não sabia bem o que fazer. Por pressão do pai, vai para Economia! No ano de caloiro, um chumbo, o primeiro de uma carreira académica até aí imaculada. Repete o ano e lá vai andando, mas era cada dia mais claro que aquilo não era, de todo, para ele. Vem daí a ideia de ir para o estrangeiro. Era uma forma de conquistar uma emancipação que desejava e, por outro lado, havia o espectro da guerra colonial, que levava para África fornadas de jovens portugueses para combater uma guerra que a maioria não compreendia.
Com a benção e ajuda dos pais, aos 20 anos, Sérgio parte para Genebra, na Suíça, para estudar Psicologia. Inicialmente, não era um exílio nem um partir para não mais voltar, não era sequer uma fuga da guerra, até porque o serviço militar podia ser adiado legalmente enquanto ele continuasse a estudar. Aí, o momento de libertação do jovem: namoradas, guitarradas, experiências de todo o tipo. O estudo até ia correndo bem, bem melhor que a Economia, mas o bichinho continuava a pedir-lhe que fosse novamente à procura. Ainda na Suíça, começou a fazer pequenos trabalhos (como porteiro de um cinema, por exemplo) para complementar o que a família lhe mandava. Em 1967, assume finalmente a decisão de deixar o curso, e a Suíça. Puxado pelo romantismo de On the Road, a bíblia de Jack Kerouac, decide agarrar na viola e deambular pela Europa, tocando (e muitas vezes dormindo) na rua e vagueando à boleia por onde conseguisse. Paris, Itália, Amesterdão. É neste porto que decide cumprir um sonho, o de atravessar o Atlântico de barco. Trabalha várias semanas como estivador e lá conseguiu um lugar na tripulação de um paquete, como ajudante de cozinha. Nessa aventura vai a sítios como a Jamaica ou Trinidad. Vê Cuba, mas apenas ao largo.

De regresso à Europa, o peito cheio de aventura cumprida, e uma única certeza: não podia voltar a Portugal. Abandonando os estudos, se voltasse ao país seria preso, por não ter cumprido o serviço militar. Volta a Genebra mas rapidamente ruma a Paris, e aí inicia-se uma nova e muito fértil fase do seu desenvolvimento. É aí que encontra muitos portugueses que o acompanhariam mais tarde, como Luís Cila ou José Mário Branco, artistas exilados que viviam num circuito boémio que Godinho rapidamente integrou, ainda que sem grande coisa para mostrar. Já tentava compor canções, em francês, mas estava ainda insatisfeito com os resultados. Em Paris, faz mil e um trabalhos para sobreviver, até entrar para o elenco da versão francesa do musical Hair, batendo milhares de candidatos. Godinho recorda esses tempos com muita satisfação. Não só mergulhou num caldeirão fervilhante (o teatro musical, a magia dos palcos e do público) como conseguiu, sem querer, uma estabilidade e uma rotina que não tinha tido nos anos anteriores. É também no Hair que conhece a canadiana Sheila, que viria a ser sua mulher e mãe da sua primeira filha. Mas já lá vamos.
Enquanto vai lutando para encontrar o seu caminho de escrita – entalado entre a reverência aos nomes consagrados portugueses e os modelos franceses – dá-se o Maio de 68, com Godinho em Paris, vivendo tudo intensamente. A relação com José Mário Branco, fraterna desde o início, vai-se estreitando, com Sérgio a colaborar aqui e ali.
1971 é um ano fundamental para a música portuguesa, com a edição de Cantigas do Maio, de Zeca, Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, de Zé Mário Branco, e Gente de aqui e agora, de Adriano Correia de Oliveira. Com um contrato com a Sassetti, Sérgio grava finalmente o primeiro disco, Os Sobreviventes, contando com a cumplicidade e mão certa de Zé Mário. O estúdio foi o mítico Strawberry Studios, no Château D’Hérouville, onde viriam a gravar os Rolling Stones, entre muitos outros. Dessas sessões, ainda em 1971, sai o EP Romance de um dia na Estrada, com quatro temas que fariam parte do alinhamento do LP de estreia.
Nesse mesmo ano, Godinho volta às viagens: Holanda, Canadá e Brasil, onde, já depois das gravações do disco, se junta ao grupo de teatro Living Theatre, que acaba por ser preso ao fazer um espectáculo de protesto em Minas Gerais. Toda a companhia, incluindo Sérgio e Sheila, ficam presos dois meses e meio, sendo depois libertados e expulsos do país. Voltam a Paris para mais uma temporada de Hair e depois vão viver para a Holanda. Entretanto Os Sobreviventes era editado em Portugal, em 1972, fazendo sucesso e estabelecendo um novo nome no panorama musical português de então, ainda que o disco tivesse tido dificuldades de distribuição e de venda, devido à censura. É um álbum político, naturalmente, mas também reflecte a vivência de vagabundo sedento de liberdade de Godinho, juntamente com os seus magníficos retratos sociais íntimos e canções de amor.

Com uma situação legal complicada, Sérgio e Sheila decidem ir viver para o Canadá. Mas antes disso, um novo disco. Vivendo na Holanda, Pré-Histórias volta a ser gravado no mesmo estúdio francês. Depois, nova partida, para uma nova casa.
Entre 1972 e 1974, o casal vive no Canadá, com Sérgio de regresso a um grupo de teatro, desenvolvendo ainda mais a sua técnica de palco. Em 74, Sérgio tinha uma viagem marcada para a Europa: o seu pai ia fazer 60 anos e queria juntar os filhos num encontro. Ainda no Canadá, onde as notícias eram esparsas e pouco certas, lê sobre a tentativa de golpe em Portugal, sem saber que este tinha funcionado e que o seu país tinha mudado de um dia para o outro. Aterra em Paris exactamente a 1 de Maio de 1974, recolhendo informações e, de seguida, apressando-se a vir para Portugal. Cai imediatamente no caldeirão desse 25 de Abril, correndo o País em espectáculos mais ou menos espontâneos e precários, na companhia de nomes como Zeca ou Zé Mário.

Depois desse turbilhão, volta brevemente ao Canadá, e os temas do seu terceiro disco, À Queima-Roupa, nasceram entre o Canadá e Portugal, entre o pré e o pós-25 de Abril. Editado nesse 1974, é um documento brilhante e fervilhante de todas as características da escrita de Godinho, com clássicos como “Etelvina” ou “Liberdade”.
Sheila estava grávida de Jwana (a primeira de três filhos de Sérgio Godinho) e, por mais que o coração de Sérgio chamasse por Portugal, havia alguma indefinição. Essa terminou quando é convidado por Raul Solnado para representar na peça “Liberdade, Liberdade”, no Teatro Villaret. Cá chegado, termina o disco e começa finalmente o período português da sua vida musical.
Em 1976 edita De pequenino se torce o destino, com direcção musical de Fausto Bordalo Dias, outro dos grandes vultos daquela geração. É mais um excelente álbum, ainda marcado pelos tempos políticos, pelo PREC e pelo Verão Quente de 1975. Seguem-se Pano Cru, de 1978, e Campolide, de 1979, discos que marcam um caminho menos panfletário e menos marcadamente político e abrem espaço ao Godinho de retratador do dia a dia, e ao cronista de amores e desamores. São dois discos que fazem a ponte entre duas fases e conseguem um magnífico equilíbrio entre as diversas facetas da sua forma de ver e contar o mundo, dando-nos pérolas como “O primeiro dia”, “A vida é feita de pequenos nadas”, “Lá em baixo” ou “Arranja-me um emprego”.
No ano seguinte, em 1980, sai a sua banda sonora de Kilas, o mau da fita, de José Fonseca e Costa. A relação de Godinho com o cinema e com o teatro, ainda que errante, nunca se quebrou totalmente. Foi ao longo dos anos actor, argumentista ou realizador.
Em 1981 sai Canto da Boca, pegando onde Campolide havia parado. Mais um êxito, mais conquista das rádios e de prémios, mais um belo disco e mais uns clássicos no alforge, que já começava a ficar bem pesado: “Com um brilhozinho nos olhos”, “É terça-feira”, “Espalhem a notícia” ou “Caramba” são provas inegáveis de um Godinho inspirado.
Para o volume seguinte, Sérgio procurava algo diferente, e queria aprofundar as relações com os nossos irmãos brasileiros, sempre fonte de grande inspiração. É assim que nasce Coincidências, que pretendia juntar Godinho com alguns dos seus pares e ídolos do país-irmão. Entre problemas de agenda e outros pauzinhos na engrenagem, o disco foi evoluindo para algo diferente. Não foi possível ter Caetano Veloso, por exemplo, mas estão aqui colaborações com gigantes como Milton Nascimento, Chico Buarque ou Ivan Lins, cabendo a este a honra de ser o único a partilhar as vozes com o músico portuense.

O capítulo seguinte, em 84, foi Salão de Festas, onde o espectro sonoro começou a incorporar elementos do light jazz. Não sendo um clássico ao nível de alguns dos registos anteriores, é ainda assim um bom disco, coeso ainda que sem grandes singles. No ano seguinte sai o primeiro best-of de uma carreira até aí irrepreensível: Era uma vez um rapaz, que trazia o óptimo inédito “Guerra e paz”.
Em 1986, é editado Na Vida Real, um disco nocturno e com ambiente de bar de jazz madrugada fora. Esteticamente irrepreensível, teve como tema mais conhecido o clássico “Lisboa que amanhece”. Em 1988, sai para as lojas Sérgio Godinho canta com os amigos do Gaspar, com músicas da famosa série infantil que marcou uma geração de portugueses. Até aqui, nas criancinhas, Sérgio musicava as nossas vidas.
Segue-se Aos Amores, a fechar a década de 80, em 1989, destacando-se a poderosa vinheta de “Alice no país dos matraquilhos” e “A democracia”. Em 1990, sai o seu primeiro disco ao vivo, o fantástico Escritor de Canções, resultante de uma muito bem sucedida temporada no palco do Instituto Franco-Português, em Lisboa. Num registo de guitarra, voz, baixo e teclas, Sérgio revisita parte do seu percurso com roupagens despidas, com resultados excelentes.
Tinta Permanente, de 1993, traz Godinho a uma nova geração. Mantém o seu registo mas dá alguns passos no sentido de uma actualização sonora mais em voga na altura. É, de certa forma, a inauguração da “fase moderna” da sua carreira. Destacamos o bem-disposto e viciante single “O elixir da eterna juventude” e o soco no estômago do país e do nosso incómodo passado de guerra colonial, a impressionante “Fotos do fogo”.

Depois do ritmo absurdo dos anos anteriores, tanto em quantidade como em qualidade, Godinho começa a desacelerar a edição de discos de originais. Os palcos – sempre cheios – continuam a ser a sua segunda (ou primeira) casa. Surgem colaborações menos óbvias com músicos de outras gerações, como os Sitiados ou os Da Weasel e começa aí uma tendência que marcaria a última fase da sua carreira. Mais do que os discos de originais de dois em dois anos, a criatividade e o bicho da curiosidade de Sérgio são satisfeitos através de novos conceitos de espectáculo, dando roupas modernas e novas aos seus clássicos, a discos “conceptuais” a meias com convidados ou em projectos paralelos, na ficção sob formatos diferentes.
Domingo no Mundo, de 1997, é o registo mais marcante desse mundo novo, com Godinho a convidar outros músicos a fazer os arranjos das suas canções. Rádio Macau, Sitiados, Kalu ou o sempre companheiro Zé Mário dizem presente. Este é o trabalho que melhor faz a ponte entre o Sérgio Godinho “clássico” e a vestimenta que viria a envergar nos muitos anos seguintes, com a cumplicidade de Nuno Rafael (Despe & Siga), essencial nessa modernização sonora.
Em 1998 temos mais um tomo ao vivo, no qual o músico acentua esse desejo de revisitar e vestir de fresco os seus temas. O resultado é Rivolitz, já com muita malta nova a bordo. Dois anos mais tarde, novo disco de originais, Lupa. Se o álbum não é particularmente inspirado e não tenha gerado grandes clássicos, é um aprofundamento do trabalho com músicos mais novos e já temos, perante nós, um Godinho 2.0 completamente formado. Hélder Gonçalves, dos Clã, surge aqui em força, solidificando uma relação com o grupo portuense que duraria muitos e bons anos. O encontro nascera de um convite de Manuela Azevedo a Sérgio para fazer um espectáculo conjunto no âmbito da Expo 98. Foi amor à primeira vista.

Em 2001 sai para as lojas Afinidades, do duo Godinho/Clã, com canções de ambos, concretizando essa admiração e estímulos mútuos, num registo bem sucedido e que, mais uma vez, reforçava a contemporaneidade e relevância moderna da obra de Sérgio. Em 2003, novo disco “conceptual” de curadoria do catálogo passado: O Irmão do Meio é Sérgio e convidados, revisitando alguns dos temas que o músico queria gravar de novo, fosse por não estar satisfeito com as versões originais fosse por querer o input dos seus amigos, ídolos e pares numa actualização de linguagem e significados dos seus temas. De Xutos & Pontapés a Caetano Veloso, de Gabriel o Pensador a Teresa Salgueiro, de Rui Veloso a Jorge Palma ou Camané, O Irmão do Meio é mais um registo a mostrar a solidez e ao mesmo tempo elasticidade da obra do músico portuense.
Em 2006, é a vez de Ligação Directa, aprofundado esta fase moderna de um Godinho que insistia em ser protagonista do seu tempo, trabalhando com sangue novo e levando este a contaminar até o seu catálogo, numa curadoria sempre viva e em actualização permanente. Com maior intervalo entre discos, Godinho ocupa-se de outros projectos – não limitados à música – e monta vários espectáculos. São disso grandes exemplos os Três Cantos, que o juntou em palco a José Mário Branco e Fausto, dando origem a um óptimo disco ao vivo e, mais recentemente, uma digressão a meias com Jorge Palma. A brincar, temos aqui juntos os quatro maiores vultos da música portuguesa das últimas quatro décadas.

O sucessor, Mútuo Consentimento, leva cinco anos a chegar, em 2011, mas teríamos de esperar nove longos anos para o disco seguinte, Nação Valente. Aqui, Sérgio, o eterno remisturador e o eterno estimulador das suas próprias obra e linguagem, vai ainda mais longe em exercícios antes ensaiados. Se noutros trabalhos pedia arranjos a artistas muito diferentes, aqui o conceito é levado às suas últimas consequências: oito das dez músicas não são suas, e sim pedidas a convidados especiais como David Fonseca, Hélder Gonçalves ou Márcia. As letras de Godinho e a “godinhização” final levam o resultado a um disco que soa inquestionavelmente a ele próprio, mesmo que neste cozinhado muita gente tenha metido o seu tempero.

E mesmo que Sérgio tenha sempre dito que gostava de falar de temas actuais sem estar preso a factos reais que possam datar o resultado musical, o ano de 2020, com a sua pandemia e o seu grande confinamento, não podia ficar sem a análise sempre atenta do maior cronista musical português das últimas décadas. Está aí, para o provar, “O Novo Normal”, música nova na qual Godinho tenta fazer sentido de uma doença que, além de médica, é profundamente social, obrigando-nos a adiar abraços e beijos como nunca.
Em 2020, Sérgio Godinho, o eterno jovem de sorriso aberto, completa 75 anos de vida, e com isso chovem as comendas, as homenagens e a celebração em palco, mesmo que com as limitações deste desgraçado tempo. Tudo merecido, tudo justo, tudo insuficiente. Não há forma de pagar o tanto que Godinho nos deu, a banda sonora das nossas vidas, musicando com as suas palavras certeiras o nosso quotidiano, todas as nossas pequenas e grandes derrotas e vitórias diárias.
Obrigado por tudo isso, querido Sérgio. Continuamos a querer viver e contamos com as tuas canções para musicar o nosso futuro.

Nota: Fotos retiradas do livro “Retrovisor”, de Nuno Galopim, e da página oficial de Facebook de Sérgio Godinho