A banda que inventou o rock moderno: musculado, centrado nos riffs e jogando habilmente com os contrastes leve-pesado. A alma do blues levada até às suas últimas consequências.
Quando ouço apelidarem os Stones de “a melhor banda de rock’n’roll do mundo”, pergunto sempre para os meus botões, então e os Zeppelin, pá? Para mim, não tenho dúvidas: pela sua modernidade, a coroa vai para os últimos. A banda-sonora da minha adolescência, passada na flanela dos nineties, faz disso prova. Se os Stones sempre me pareceram coisa longínqua, respeitosa relíquia de um longínquo passado, os Zep foram tão meus como Cobain e Nevermind.
Sou um ávido coleccionador de discos, amando doentiamente macheias deles, mas terei sempre um carinho especial por dois exemplares: Led Zeppelin II e Led Zeppelin IV. Se o último foi a peça inaugural da minha colecção de discos e, por isso, a minha preciosa “moeda nº 1”, o primeiro foi a minha porta de entrada para os Zep, gravado no lado A de uma cassete do meu irmão, ouvido vezes sem conta no mesmo roufenho gravador que usávamos para jogar o ZX Spectrum. Hoje é o álbum que de longe mais ouvi na minha vida. Chamem-me mórbido, chamem-me pálido, mas volta e meia dou por mim a imaginar o meu funeral, ao estilo d’ “Os Amigos de Alex”, com a malta a pôr o Led Zeppelin II a rodar, resmungando: “o que o bandalho do Ricardo nos chateava com esta merda, pá”. Mas deixemo-nos de lamechices pseudo-biográficas e vamos sem mais delongas ao assunto que nos trouxe aqui: contar a história da melhor banda de rock’n’roll do mundo.
Ainda antes de os Led Zeppelin existirem, duas das suas figuras já eram bem conhecidas no meio musical britânico: o guitarrista Jimmy Page e o baixista, teclista e arranjador John Paul Jones, ambos músicos de sessão muito requisitados nos swinging sixties (por exemplo, a guitarra ácida que ouvimos na versão de Joe Cocker de “With a Little Help From My Friends” é de Jimmy Page; e o órgão colorido que abre “She’s Like a Rainbow” dos Stones pertence a John Paul Jones).
Page ficaria ainda mais famoso quando passou a integrar os Yardbirds, tornando-se assim o último dos monarcas de uma distinta dinastia de grandes guitarristas de blues rock, por onde também passaram Eric Clapton e Jeff Beck. Mas no seio dos Yardbirds foram-se zangando as comadres até Jimmy ficar com o menino sozinho nos braços. Há males que vêm por bem pois assim Page pôde finalmente reconstituir a banda com malta mais receptiva aos novos sons que já imaginava na sua cabeça.
O primeiro a aceitar o convite foi John Paul Jones, que Page conhecia bem dos tempos das lides de sessão. Já Robert Plant na voz e John Bonham na bateria foram escolhas menos óbvias, pois fora do circuito regional das Midlands, onde tentavam em vão a sua sorte, eram perfeitos desconhecidos. Quando os quatro se reuniram pela primeira vez numa sala de ensaios, e experimentaram o standard “The Train Kept A-Rolling”, a pujança do som foi tal que perceberam de imediato que as coisas iriam resultar. O baixo irrequieto de Jones, a possante bateria de Bonzo, a guitarra áspera de Page e os gemidos bluesy de Plant tinham finalmente encontrado o seu habitat natural. A química entre eles era incrível.
Ainda chegaram a actuar na Escandinávia enquanto New Yardbirds mas para cortarem definitivamente o cordão umbilical com a antiga banda, depressa mudaram o nome para “Lead Zeppelin” (mais tarde, “Led”), que significa “balão a cair”, expressão idiomática inglesa para “fiasco”. Um fiasco que viria a vender no mundo inteiro cerca de 300 milhões de discos.
Há um quinto elemento sem o qual os Zeppelin nunca teriam sido o que foram: o manager Peter Grant. Com a sua lealdade à banda e a sua ferocidade na disputa com o mundo (editoras, promotores, media, tudo o que se mexesse), Grant mudou por completo a relação de forças na indústria musical, em favor dos artistas. Quando os Zeppelin não eram ainda ninguém, Grant conseguiu um generoso contrato com a prestigiada Atlantic Records, garantindo um avanço de duzentos mil dólares. Mais tarde, quando os concertos dos Zeppelin começaram a fazer furor, renegociou as percentagens dos habituais 50% para os promotores, 50% para os artistas (gatunos!), para um acordo bem mais favorável- 10% para os promotores, 90% para os Zep. Depois de décadas de exploração dos artistas, o trabalho criativo era finalmente valorizado como devia.
Eis então que em Janeiro de 1969 sai o primeiro disco, o mítico Led Zeppelin, um dos álbuns mais influentes da história do rock. É o mais bluesy dos álbuns dos Zep mas não é aí que reside a sua originalidade pois antes dele já gigantes como os Cream e Hendrix levaram bem longe este namoro. São outras as singularidades que tornaram este álbum revolucionário, servindo de matriz para toda a sua obra futura: a agressividade do seu som, a centralidade dos riffs e as subtis dinâmicas suave/forte.
Comecemos então pelo peso e a pujança de Led Zeppelin. Nunca se tinha ouvido algo tão tonitruante no rock’n’roll, sendo claramente o elo de ligação entre o rock psicadélico dos anos 60 e o proto-heavy metal dos anos 70. Se foram depois os Black Sabbath a protagonizarem este trilho, é importante frisar que o seu álbum de estreia surgiu depois de Led Zeppelin, sendo claramente influenciado por este. Podem sempre argumentar “ah e tal, mas antes dos Zep já os Blue Cheer e os Iron Butterfly tinham uma sonoridade pesada”. Responderemos: Iron quê? Por outras palavras, mesmo que eventualmente não pertença a Led Zeppelin a tão propalada patente do rock “pesado”, foi este sem dúvida o rastilho que fez explodir a cena, influenciando literalmente centenas de bandas. E não me refiro apenas ao que viria mais tarde a chamar-se metal; falo de todo o rock musculado, que vai do punk até ao grunge, dos Ramones até aos Soundgarden. “Communication Breakdown” é punk sete anos antes de ele ter nascido.
Passemos agora à segunda revolução estética trazida pelos Zeppelin e inaugurada no seu álbum de estreia: a absoluta centralidade do riff, o qual rivaliza, e por vezes mesmo ofusca, a própria melodia. Guitarristas como Keith Richards e Pete Townshend tinham, é claro, desbravado antes o caminho, mas foi Jimmy Page que levou o poder do riff até às suas últimas consequências. Só por este aspecto é incalculável a influência dos Zep sobre todo o rock vindouro.
Por fim, falemos da terceira sublevação sonora posta em marcha com o seu primeiro disco: as complexas dinâmicas entre registos leves e pesados encontrados numa mesma canção. “Baby, I’m Gonna Leave You” e “Dazed and Confused” são bem reveladoras destes contrastes entre luz e escuridão, os altos e baixos da própria vida. Robert Plant nunca foi propriamente o melhor aluno de Leonard Cohen, mas para quê dar muita importância às palavras quando a música dos Zep, tão densa e expressiva, sempre disse tudo? Mais tarde, tornou-se um lugar comum afirmar que foram os Pixies e os Nirvana a inventarem a dinâmica suave/forte (com as influentes “Tame” e “Smells Like Teen Spirit” a servirem de modelo para todo o rock alternativo dos anos noventa) mas foram os Zeppelin que vinte anos antes começaram a escavar o filão.
Mas se o disco de estreia foi o golpe de estado estético de que atrás demos conta, é no segundo disco, o lendário Led Zeppelin II, que a banda leva todos esses traços até ao seu limite. Onde Led Zeppelin é bluesy até à medula, Led Zeppelin II, não renegando nunca as origens blues, é um álbum mais assumidamente rock. Diria mesmo mais: é o álbum de rock’n’roll mais perfeito de sempre. Basta evocarmos dois dos seus momentos mais sublimes para nos rendermos às evidências.
Prova número um. No terceiro minuto de “Whole Lotta Love”, após uma psicadélica deambulação de sexo e feedback, sempre a acumular tensão, a guitarra de Page finalmente extravasa, naquele brilhante diálogo “duas pancadas na porta, resposta tremenda da guitarra-solo”, chamada-resposta repetida mais cinco vezes, até finalmente o tema desembocar de novo no poderoso riff inicial. Sou um gajo ateu dos quatro costados mas tenho que admitir que a transcendência deste trecho abala profundamente os alicerces da minha irreligião.
Prova número dois. A meio do terceiro minuto de “What Is and What Should Never Be”, a velhaca da guitarra de Page vai passeando da coluna esquerda para a direita, da coluna direita para a esquerda, e nós atirados de um lado para o outro, feitos bolas de ping-pong, enquanto Bonzo dá uma ligeira batida no címbalo que fica a pairar, até que a voz de Plant entra a rasgar com um swing do outro mundo. Foda-se que estes cabrões sabem mesmo rockar!
Claro que com todas estas credenciais, Led Zeppelin II chegaria depressa a número um, destronando Abbey Road (o último álbum gravado pelos Beatles e para muitos o seu melhor). É difícil não vermos neste facto a passagem de testemunho dos mais velhos que dominaram a década de sessenta para os mais novos que governariam a década seguinte. Só os media, ressentidos por os Zep terem conquistado o topo sozinhos, sem um único felattio aos ufanos guardiães do gosto, se viraram contra a banda, numa patética campanha de ódio e desinformação: que não passavam de um passageiro hype criado pela indústria, que eram uns vis mercadores que punham o dinheiro à frente da autenticidade, que recorriam ao virtuosismo para esconder a falta de substância, que eram uns reles ratoneiros, roubando tudo aos velhos bluesmen americanos.
Se a passagem do tempo se encarregou de desmontar com estrondo as primeiras acusações, ainda hoje há muito preguiçoso fazedor de opinião a manter o último libelo, como se os Led Zep mais não fossem do que uma máquina muito bem oleada de fazer plágios. Dizem até as más-línguas que o próprio “Whole Lotta Love” é um descarado roubo do velho blues “We Need Love”, escrito por Willie Dixon e celebrizado por Muddy Waters. A contenda foi inclusive levada a tribunal, tendo o mesmo dado razão ao bluesman. Até aqui tudo bem, o genial Dixon merece com certeza a sua quota-parte do vil metal. A questão é, contudo, outra. Se nos dermos ao trabalho de compararmos os dois temas, depressa nos apercebemos que o imenso rio que desagua na foz já nada tem a ver com o fiozito de água que corria ao de leve à nascente. Que fique registado em acta: os velhos blues americanos, que foram o mote para tantos temas dos Zep, serviam apenas como vaga inspiração, a partir da qual eles criaram um som verdadeiramente original.
Se insistirem na acusação de plágio, então não se esqueçam, por favor, do sentido inverso, pois toda a gente roubou aos Zeppelin, dos White Stripes aos Black Crowes, dos Stone Roses aos Beastie Boys. Vejam, por exemplo, “Bad” de Michael Jackson, que facturou milhões com um riff quase decalcado a papel químico da clássica “Heartbreaker”. Curiosamente, o mercenário Page e seus venais compinchas nunca lhe moveram qualquer acção judicial. Dá que pensar.
Em 1970, a banda lança o doce Led Zeppelin III, mais uma vez aventurando-se por novos caminhos: o blues e o rock continuam presentes, é claro, ou não se chamassem eles Led Zeppelin, mas agora o tom dominante é folkie e bucólico, com os temas acústicos prevalecendo sobre os eléctricos. A inspiração para o álbum nasceu de umas férias passadas numa aldeia remota no País de Gales chamada Bron-y-Aur, numa casa sem electricidade, onde violas, mandolins e pandeiretas eram as únicas ferramentas à mão. Mesmo com esse forte pendor acústico, temas como a feroz “Immigrant Song” e a bluesy “Since I’ve Been Loving You” encarregam-se de fazer tremer as válvulas dos amplificadores. Os puristas que me perdoem a blasfémia mas para mim este último tema não é apenas o melhor blues cantado por um branco; é o melhor blues de sempre, ponto final. Guitarra, baixo, bateria, órgão, voz- tudo chora neste clássico, num crescendo incrível até o dique rebentar no final. Inigualável.
Em 1971 surge o famigerado Led Zeppelin IV, síntese perfeita entre o blues, o rock e a folk dos seus predecessores. “Black Dog” e “Rock and Roll” dão-lhe o combustível rock, com riffs pujantes e complexas mudanças de tempo. “When the Levee Breaks” empresta-lhe o travo blues e aquela linha de bateria do outro mundo, que só poderia ter sido inventada por Bonzo. “Battle of Evermore” é folk inglês ancestral, tresandando a cultura celta por todos os poros. “Going to California” é a homenagem à folk rock da West Coast que Robert Plant tanto amava. “Stairway to Heaven” é aquela bonita melodia que todos conhecemos e que só o cinismo indie do século XXI, desconfiado de tudo o que lhe pareça demasiado belo, coloca fúteis reservas. Já agora, um parêntesis importante: por mais que a Atlantic Records pressionasse a banda para lançar “Stairway to Heaven” como single, eles resistiram até ao fim. Para os Zeppelin, um álbum sempre foi coisa sagrada, unidade indivisível que não deve ser amputada com o bisturi dos singles. Essa dignificação do formato álbum foi outro dos seus grandes legados.
Em 1973, entra em cena Houses of the Holy, talvez o mais atípico dos álbuns dos Led Zeppelin. A sua primeira estranheza é saber pouco a blues, quase uma heresia nesta banda para quem a música nascida no delta do Mississippi foi sempre tão central na sua identidade. A segunda idiossincrasia é o seu travo forte a prog rock, como é bem patente nos clássicos “The Song Remains the Same” e “No Quarter”. Talvez por este aspecto seja o mais datado dos seus discos. Terceira particularidade: John Paul Jones, enquanto teclista e compositor, começa a pôr as garras de fora. Nós agradecemos porque o órgão na psicadélica “No Quarter” deveria ser considerado património imaterial da humanidade. Quarta e última bizarria: a banda recorre à paródia em dois temas, brincando com o reggae e o funk em “D’yer Mak’er” e “The Crunge”. Se a banda foi sempre crucificada por estas duas tão inusitadas canções, o certo é que uma parte do charme deste disco provém destas brincadeiras.
1975 é o ano de um dos mais aclamados álbuns dos Zeppelin: o carismático Physical Grafitti. Como tantas vezes sucede nos discos-duplos (vem-me de imediato à cabeça o Sandinista dos Clash e o The River de Springsteen), o álbum tem o mérito de reunir num só objecto uma quantidade absurda de grandes temas, e o demérito da sua desmesura e dispersão. Os mais cínicos dirão sempre que um só disco bastava, que o menos é sempre mais, patati, patatá; mas se a banda não tivesse ao seu dispor tantas espirais adicionais, dificilmente teria gravado os épicos de oito e de onze minutos que por lá aparecem. Seria uma pena: o orientalismo de “Kashmir” e a slide guitar de “In My Time of Dying” são dois clássicos incontornáveis.
Mas mesmo os grandes impérios entram um dia em declínio. Depois de Physical Grafitti, uma sucessão de tragédias pessoais começaria a afectar a sua obra. Tudo começou em Agosto de 1975, quando Plant e a mulher quase que morrem num acidente de viação. Ao mesmo tempo, Bonzo começa a afundar-se cada vez mais na bebida e Page, se algum dia fez o pacto com o diabo, este apareceu sob a forma do açúcar castanho da heroína. Por estas razões, Presence, de 1976, não sendo de forma nenhuma um mau álbum (como o poderia ser se as epopeias “Achilles Last Stand” e “Nobody’s Fault But Mine” têm lá a sua morada?), já não tem a mesma frescura dos seus predecessores. Os riffs são potentes e os diálogos entre a guitarra e a bateria, inventivos, mas a voz de Plant surge cansada e a produção é artificial, desaparecendo o timbre orgânico que sempre fora seu apanágio. Os quatro magníficos começavam aos poucos a perder o norte.
Mas a verdadeira tragédia acontece em Julho de 1977, quando o filho de Plant morre de uma estúpida infecção. O frontman nunca mais recuperaria inteiramente do desgosto. Num outro tabuleiro, Bonzo e Page chafurdam cada vez mais nas suas dependências. Caberia a John Paul Jones carregar o barco sozinho. Acontece que os Led Zep sempre funcionaram como um todo, pelo que as boas intenções de Jones de pouco lhes serviram. 1979 não foi um bom ano para os Zeppelin. In Through the Out Door, o seu último álbum, não vale um tostão furado. Os riffs do Jimmy Page? Não existem. A pujança e a testerona? Não as há. No seu lugar, uns sintetizadores esforçados tentam salvar a honra do convento. Não conseguem. A verdade é esta: In Through the Out Door só é dos Led Zep no nome pois em tudo o resto é a porra de um primeiro disco a solo de John Paul Jones. E os Zeppelin sempre foram muito maiores do que a soma das suas partes. Muito, muito maiores.
E como uma desgraça nunca vem só, uma última desventura acontece. No dia 25 de Setembro de 1980, depois de Bonham ingerir quarenta vodkas-laranja seguidos, adormece e asfixia-se no próprio vómito. A notícia foi devastadora para todos e a decisão igualmente unânime: sem a inconfundível bateria de Bonzo, os Zeppelin nunca seriam a mesma banda. Com uma dignidade de se lhe tirar o chapéu, a melhor banda de rock’n’roll do mundo acabou aqui o seu trilho. Já os seus álbuns irão sempre ser redescobertos a cada nova geração, com a mesma frescura do primeiro dia. Ramble on!