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Do Mississippi a Chicago: o apogeu da história do blues

No lamento da voz, no deslizar dolente das cordas da guitarra, nos bemóis do diabo, o blues conta toda a lúgubre história da comunidade negra nos Estados Unidos.

No delta do Mississippi da viragem do século XX, a extrema pobreza, as condições de trabalho duríssimas nas plantações e um abjecto regime de segregação racial criaram o caldo de sangue e de lama onde o blues rapidamente medrou. Pouco interessava que a escravatura estivesse abolida há mais de trinta anos. Para os negros que trabalhavam de sol a sol nas plantações, esfolando os joelhos e as mãos na apanha de algodão, a vida não era assim tão diferente. Tudo estava desenhado para a supremacia branca não sofrer o mínimo beliscão. A maioria das terras continuava nas mãos dos antigos donos e a nova economia de rendeiros perpetuava a velha exploração. Em teoria, a metade da colheita a que os rendeiros teriam direito no final do ano permitiria que fossem aforrando um pequeno pé-de-meia, para um dia poderem adquirir o seu quinhão de terra e liberdade. Na prática, com os adiantamentos em géneros, sementes e fertilizantes, e as contas manhosas sempre feitas pela bitola do patrão, o rendeiro acabava sempre o ano em dívida para com o proprietário. Essa eterna dívida era o seu novo grilhão. Se algum rendeiro mais ingénuo se atrevesse a questionar as regras do jogo, um linchamento, com o enforcado balançando uns dias na aragem, era sempre o mais eficaz dos correctivos. No lamento da voz, no deslizar dolente das cordas da guitarra, nos bemóis do diabo, o blues conta toda esta lúgubre história.

Mas o blues nunca foi só sofrimento, foi sempre também catarse e esperança. No sábado à noite, depois de uma semana árdua de trabalho, a malta da faina, a maioria na flor da idade, fazia questão de se divertir um pouco nas juke joints, barracos à beira das plantações onde se podia beber whiskey barato, jogar à batota, dar uns pezinhos de dança e ouvir um bom blues. Associamos muitas vezes este género a tradições ancestrais, mas foi justamente o afluxo de tantos jovens para estas plantações que permitiu o rápido florescimento do blues.

Uma das primeiras Juke Joints

Quem tinha algum jeito para a música encontrava no blues a oportunidade para fugir ao inferno do algodão. Era uma vida errante, sem poiso certo, sempre rumando de terra em terra para sacar umas magras gorjetas em esquinas e juke joints; mas pelo menos tinham um bem precioso: a liberdade. Muitos anos antes da beat generation, os bluesmen viajavam estrada fora pela América profunda, no mesmo limbo entre arte e marginalidade tão caro à “geração” de Kerouac.

Para quem era bom cristão, não havia nada de mais blasfemo do que o blues, considerado a própria “música do diabo”. A música negra americana vivia desta tensão entre o sagrado e o profano, o divino e fundamentalista gospel contra o mundano e boémio blues. Quando o grande bluesman de Chicago, Howlin’ Wolf, foi visitar a sua devota mãe ao Mississippi, e lhe quis oferecer um bom quinhão do seu aforro, a senhora Wolf repudiou com violência esse “dinheiro do diabo”. O pecado de Ray Charles foi ainda maior: no final dos anos quarenta, Ray atreveu-se a cruzar o gospel com o blues. Os mais devotos nunca lhe perdoaram a heresia.

Aos poucos, foi-se criando uma comunidade de bluesmen, com os mais velhos iniciando os mais novos nos segredos obscuros da música do delta. Foram muitos os seus protagonistas mas, pelo seu génio criativo e influência, teremos que destacar três nomes: Charley Patton, Skip James e Robert Johnson.

Charley Patton era um fulano pequeno e franzino mas a sua voz era possante como o caudal do rio Mississippi. Mulherengo e beberrão, a sua vida desregrada de sexo, whiskey e blues tornou-se o modelo para todo o bluesman que se preze. Em 1908, começa a sua vida de músico itinerante, tornando-se muito popular no sul profundo. Charley era um entertainer nato, tendo inventado os malabarismos com a guitarra mais tarde celebrizados por T-Bone Walker e Jimi Hendrix.

1926 foi um ano muito importante para a disseminação do blues do delta: H.C. Speir abre uma loja de discos no bairro negro da cidade de Jackson, fazendo audições em busca de talentos para as editoras discográficas do norte. Patton é descoberto em 1929, gravando de imediato e vendendo bem. Temas como “Mississippi Bo Weavil Blues” dizem tudo: a sua voz rouca e pujante, a crueza da sua slide guitar e a forma percussiva como ataca a guitarra foram profundamente influentes; e a própria letra, um lamento sobre uma praga de insectos que na altura dizimou as colheitas de algodão, denuncia as duras origens do blues. Ninguém encarnou melhor a rudeza do Mississippi do que o grande Charley Patton.

O segundo gigante do delta foi Skip James. Antes de se dedicar à música itinerante, James fez de tudo na vida: trabalhou nas plantações e no contrabando de whiskey, construiu estradas e viveu da batota, levantou diques e foi pianista num bordel (um simpático eufemismo para proxeneta, suspeito). Ninguém sabe ao certo a origem da alcunha de “Skip” mas a julgar por alguns dos seus ofícios mais perigosos é natural que por vezes tivesse de se “esquivar” à pressa da região. Em 1931, gravou finalmente os seus blues melancólicos e andou uns tempos na vida nómada de bluesman. Nunca teve grande popularidade: a sua faceta misteriosa e acabrunhada, pouco dado a grandes rambóias, não lhe traziam muitos fãs. Como se não bastasse, a maldita da grande Depressão fez soçobrar também a Paramount Records, que ainda lhe ficou a dever dinheiro. Pelas obras-primas que gravou, recebeu uns miseráveis quarenta dólares. Quando reencontra o pai e este lhe oferece um lugar como pastor numa igreja em Dallas, não pensa duas vezes. A vida consegue ser de uma ironia bem madrasta: encontrara a transcendência no blues mas é a igreja que lhe enche a barriga. Só foi redescoberto em 1964, no auge do revivalismo do blues folk, mas a velha magia já o tinha abandonado.

Onde Patton era rude e possante, James é frágil e delicado. O som da sua guitarra é sombrio, quase etéreo, resultante de uma afinação fora do comum em ré menor e de um dedilhar ágil e melodioso. A sua voz dolente em falsete não canta, chora, numa angústia indizível, beleza e terror em partes iguais. Sentimos um fio a percorrer a espinha em “Devil got my woman” quando James suspira: “I’d rather be the devil, to be that woman’s man”. Agradecemos à mulher de Skip James a oferta da matéria-prima mais valiosa para um bluesman: um coração destroçado.

O delta do Mississippi deu-nos ainda um terceiro grande nome: o mítico Robert Johnson. Casa-se em 1929 e, desonrando o código de ética dos bluesmen, trabalha na plantação para sustento da família. Mas a mulher morre a dar à luz e a sua família responsabiliza-o pelo sucedido: “castigo de Deus por se entregar à música do diabo” é o veredicto. Robert decide então abandonar para sempre a maldita apanha de algodão, dedicando-se ao blues a tempo inteiro. O começo não foi o mais auspicioso: quando Johnson toca pela primeira vez guitarra para Son House, este não fica nada impressionado, aconselhando-o a desistir e a investir antes na harmónica. Um ano depois, quando se reencontram de novo, Son fica de boca aberta: Johnson tocava maravilhosamente.

É neste contexto que surge a lenda de que Robert, numa encruzilhada no meio do nada, à meia-noite, ofereceu à alma ao diabo em troca de se tornar um grande guitarrista. Eu acredito: tocar como ele toca, fazendo o ritmo e o solo ao mesmo tempo, como se houvesse duas guitarras, só pode ser obra do diabo. Para os mais cépticos, há uma explicação mais prosaica. Johnson esteve um ano perto da sua terra natal a aprender guitarra com o seu mentor- Ike Zinnerman. Tocavam muitas vezes no cemitério à noite, simplesmente porque era um sítio tranquilo onde ninguém os chateava. Com tão macabro local de ensaios, é natural que começassem a surgir os mais assombrosos rumores.

Dominando agora com mestria a arte do blues, Johnson está preparado para se lançar de cabeça na vida de músico itinerante. Começa por vaguear pelo sul, actuando no habitual circuito de juke joints, picnics e esquinas movimentadas. A partir de 1932, começa também a calcorrear as grandes cidades a norte. Era pior do que um marinheiro: em cada lugarejo tinha uma mulher, adoptando nomes diferentes. Foi a sua paixão por saias e whiskey que lhe causou a sua morte em 1938. O dono de um bar, despeitado por Johnson andar a enrolar-se com a sua mulher, envenena-lhe o whiskey. Morreu no seu auge, aos (estupidamente curtos) vinte e sete anos. Criaria jurisprudência.

Mas voltemos dois anos atrás. Em 1936, é finalmente descoberto por H.C. Speir, gravando os seus primeiros 78 rotações. Mais cosmopolita do que a maior parte dos seus colegas do Mississippi, Robert foi dos primeiros a estudar intensivamente a obra de dezenas de bluesmen, fazendo uma apurada síntese dos seus nomes maiores. Johnson sabia que só quem assimila bem o seu passado poderia almejar o futuro, e o futuro a ele pertenceu: em temas como “Sweet Home Chicago”, o gingar bluesy que Johnson imprime ao ritmo tem uma modernidade incrível, apontando claramente o caminho para o blues de Chicago e o rock’n’roll das décadas vindouras.

Este neto de escravos, que andou na escola apenas quatro anos, era um letrista extraordinário, com um sentido poético fora do vulgar. Atentem nesta letra: “seguia-a até à estação, com a sua mala na minha mão / é difícil continuar quando todo o teu amor é em vão/ quando o comboio começou a andar, olhei-a nos olhos / senti-me tão só que não pude deixar de chorar / todo o meu amor em vão”. Oferece-se a própria guitarra que o diabo afinou a quem conseguir igualar a expressividade cinematográfica das palavras de “Love in vain”.

Nos anos 40, as coisas tornaram-se cada vez mais azedas no sul profundo. O clima de ódio racial torna-se insuportável e, com a automatização da colheita de algodão, as oportunidades de trabalho nas plantações caem abruptamente. Ao mesmo tempo, a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra gera um boom económico sem precedentes, criando milhares de postos de trabalho nas cidades fabris. Toda esta conjuntura levou a que centenas de milhares de negros do sul migrassem para o norte e a costa oeste. Muitos foram do Mississippi para Chicago, encontrando trabalho na siderurgia, na indústria da carne e nos caminhos de ferro. Claro que os bluesmen do delta– de Willie Dixon a Muddy Waters, de Jimmy Reed a Howlin’ Wolf – seguem também nesta enxurrada para norte, assentando praça nos efervescentes clubes de blues do sul e oeste de Chicago. De uma só penada, a ventosa cidade de Illinois torna-se o coração da América negra e a capital do blues.

A vida em Chicago não é fácil. A discriminação no acesso à habitação (e ao emprego) é a regra, pelo que a comunidade negra não tem outra alternativa senão se acantonar no gueto de South Chicago. As habitações  são velhas, degradadas e sobrelotadas. As tensões raciais são constantes (nomeadamente entre afro-americanos e irlandeses) e de quando em vez emergem com violência. A polícia não quer saber, desprotegendo esta zona da cidade. Mas comparado com o sinistro regime de apartheid do sul profundo, South Chicago é o paraíso na terra. Aqui, todos podem votar, beber do mesmo bebedouro, comer no mesmo restaurante, sem o crivo estúpido da cor da pele a ditar as suas regras.

Desta síntese entre origens rurais e novas vivências citadinas, nasce um novo estilo de blues: metade, rudeza e autenticidade do delta; metade, explosiva electrificação- mais consentânea com o novo ambiente violentamente urbano de Chicago. Os conjuntos são pequenos e rudes, em contraste com o blues sofisticado e maneirento da west coast: uma harmónica electrificada a substituir os sopros, um contrabaixo, uma bateria e uma guitarra eléctrica com slide são mais do que suficientes.

Três nomes vêm à baila quando falamos da cena de Chicago: Chess Records como quartel-general; Willie Dixon como o grande arquitecto nos bastidores, escrevendo as canções e forjando a sua áspera sonoridade; Muddy Waters como o homem da frente, conquistando as plateias com a sua voz poderosa e o seu porte majestoso. No final dos anos 40 e na primeira metade dos anos 50, o incendiário blues de Chicago deu-nos clássicos em catadupa, muitos deles revisitados pelas grandes bandas de rock dos anos 60. Temas como “Hoochie Coochie Man” e “Manish Boy” de Muddy Waters, “Spoonful” e “Back Door Man” de Howlin’ Wolf, “Bring it On Home” de Sonny Boy Williamson e “I Can’t Quit you Baby” de Otis Rush, são apenas uma pequena amostra dos anos de ouro do blues.

Sam Phillips estava louco com este novo blues eléctrico, apressando-se a publicar na sua editora em Memphis grandes nomes como B.B. King e Howlin’ Wolf. E dizia para os seus botões: “Se um dia eu encontrar um branco que cante como um negro, enriqueço.” Palavras proféticas pois em 1954 Phillips descobre um miúdo branco chamado… Elvis Presley. E o truque de ilusionismo de Sam é tão simples como engenhoso: pega num blues obscuro (“That’s All Right”) de um bluesman obscuro (Arthur Crudup) e põe o branquelas a cantá-lo. Resultado: a explosão do rock’n’roll. O rock tornou-se assim o filho mais famoso do blues. O problema é que o seu sucesso foi tão retumbante que já ninguém queria saber do pai.

Em 1959, o blues leva uma nova machadada com o nascimento da Motown. O soul melódico e sofisticado da editora de Detroit tornou-se muito mais apelativo para a comunidade negra. Há uma razão sociológica para esta mudança de gostos. Apesar das letras dos blues de Chicago não incidirem directamente sobre os grilhões dos campos de algodão, o espectro do esclavagismo e dos linchamentos pairava sempre sobre aqueles malditos bemóis. No momento em que os negros americanos conquistavam os seus direitos civis, e reclamavam orgulho pela cor da sua pele, o blues evocava em demasia um tempo de humilhação que eles queriam acima de tudo esquecer. 1958 foi o último ano em que Muddy Waters marcou presença nos charts R&B. Não há coincidências.

Mas Deus escreve direito por linhas tortas. No preciso momento em que o blues perde a popularidade no seio da comunidade negra, muitos white boys começam a apreciá-lo. No seio do circuito universitário das cidades cosmopolitas, Nova Iorque à cabeça, surge um movimento de revivalismo da folk, no qual o blues ocupa um lugar privilegiado. Os jovens esquerdistas de classe média estavam sedentos de uma música autêntica, não contaminada pela sociedade de consumo, e o blues preenchia os requisitos. E no outro lado do Atlântico, nas ilhas britânicas, o culto do blues era ainda maior. Bandas como os Stones, os Animals e os Who nasceram em meados dos anos 60, reciclando os velhos clássicos do blues e devolvendo-os à América na “invasão britânica”. Mais tarde, os Cream, Hendrix e os Led Zeppelin elevaram a parada com o seu blues rock psicadélico, pejado de distorção e feedback. Sob esta nova e revolucionária forma, o blues conquista o mainstream.

Nos anos 70 esmorece o entusiasmo mas nos eighties, à boleia do sucesso do filme “The Blues Brothers”, surge um revivalismo do género, com os texanos Steve Ray Vaughan e os ZZ Top a alcançarem algum sucesso. Mas a partir dos anos 90, o blues cai de novo no esquecimento. Se formos espreitar a secção de blues numa qualquer FNAC, contam-se pelos dedos os discos editados depois dos anos oitenta. As poucas excepções provêm sobretudo dos últimos discos dos velhos bluesmen, como acontece neste momento com o grande Buddy Guy, recentemente premiado. Será que o blues se está a apagar como género vivo, deixando de reflectir a vida e as aspirações das novas gerações? Será que o blues sobrevive hoje como mera indústria da memória? Será que e a violência do delta do Mississippi, tendo sido o berço do blues, tornou-se também o seu caixão? Eu cá não me acredito. Mais tarde ou mais cedo, um puto levará a sua guitarra para uma encruzilhada à meia-noite e tudo começará outra vez. A minha fé no diabo é infinita.

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