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2001: o indie-rock, de Nova Iorque para o mundo

O indie trouxe uma abertura do rock, longe da depressão sisuda do grunge e do purismo clássico. Um estilo capaz de integrar música de dança, tecnologia e electrónica, juntando elementos tão contraditórios como o espírito do punk e o brilho da pop.

Podemos discutir os termos, se é indie, neo-garage ou rock alternativo. Se nasceu em 2001 com a tomada de poder por parte dos Strokes ou se vinha de trás. Se durou dez anos, menos, ou ainda dura. Se foi o último grito do rock antes da sempre anunciada morte. Podemos discutir muita coisa. Mas é inegável que, em 2001, há exactamente 20 anos, a paisagem musical mudou e marcou pelo menos a década seguinte. Foi a hora do revivalismo rock, do garage rock ou, por falta de um melhor termo, da conquista mundial do Indie Rock.

Para avaliar qualquer movimento, precisamos de alguns fatores: a localização (quando existir); o contexto económico, político e social da altura; os protagonistas; e a influência que o dito movimento teve. Comecemos, então, a olhar para a revolução que rebentou em 2001.

Na viragem do século, o panorama musical estava a viver uma das maiores mudanças de sempre, comparável à invenção dos discos gravados. A indústria vinha de uma década de extraordinário sucesso financeiro, com as vendas de CD a alimentarem receitas sempre crescentes. O céu era o limite, mas estava prestes a cair em cima da cabeça das editoras, com o advento da partilha digital, e gratuita, de música.

Nu metal albuns
No fim dos anos 90, o panorama do rock era liderado pelo movimento nu metal

No rock, o cenário era bastante desolador. A década de 90 vivera muitos anos alimentada por vários fenómenos, acima de todos o grunge, que havia rebentado com tudo em 1991. No Reino Unido, o amor ao grunge foi verdadeiro mas deu lugar à reacção da Britpop, um pop/rock menos sisudo, mais festivo e decididamente britânico. Perto do final da década, já não restavam grandes blockbusters mundiais à moda dos anos anteriores. Ao invés, iam nascendo cenas e nichos, à medida que os ouvidos dos consumidores se iam abrindo a novos sons. No rock, o palco era dominado pela geração seguinte à dos grungers: o odioso nu-metal era rei e senhor, com bandas como Limp Bizkit e Linkin Park  a esmagarem nas tabelas de vendas. No Reino Unido, depois de a Britpop se consumir a si próprio, o “rock” tinha como figuras emergentes coisas domadas como os Coldplay ou os Travis. Com boas canções, boas melodias, mas sem qualquer chama, sem qualquer perigo. Os U2, já muito longe do seu auge, foram escolhidos como banda de 2000 pela revista Spin. O rock estava numa crise de identidade.

Talvez não haja outro género que se tenha reinventado tanto, e com tanto sucesso, como o rock. Mas não era de todo claro, no início do século, que a próxima grande coisa fosse a pura e simples banda de rock alternativo.

Nova Iorque, 2000. Os Strokes eram apenas uma entre dezenas de bandas que se iam formando pela cidade. A cena não era ainda reconhecida como uma cena, mas havia de facto uma série de circunstâncias que se reuniam em Nova Iorque, nesse momento, e que potenciaram uma série de fenómenos.

Politicamente, a cidade era governada por Giuliani, muito antes de voltar à ribalta como o maníaco advogado do maníaco Donald Trump. Depois de décadas de decadência naquela verdadeira selva urbana, Giuliani tinha como prioridade “limpar a cidade”. Isso significava combater o tráfico de droga, absolutamente descontrolado, o crime a níveis alarmantes, o vandalismo, os sem-abrigo, a imagem da pobreza e da degradação. Esse processo trouxe riqueza e transformação à cidade, numa gentrificação que a descaracterizou e que ganhou tantos adeptos como opositores. Os miúdos mais alternativos, que viviam para tocar, ver concertos e apanhar mocas, estavam a sentir-se encurralados, e recuavam para os clubes que resistiam ao aumento das rendas e serviam de santuário para uma tribo de misfits: drogados, músicos, drag queens, prostitutas, vigaristas de várias estirpes, artistas, solitários e sonhadores.

Williamsburg
Avenida Bedford, em Williamsburg, foi o epicentro da nova cena indie

Brooklyn é, nesse sentido, um belo exemplo. Aquele que ficou para a história como o bairro marcante do revivalismo indie-rock (apesar de os maiores símbolos do movimento, os Strokes, não andarem por lá) estava ainda longe da mão higiénica de Giuliani. Era uma zona perigosa, para onde os putos de Manhattan simplesmente se recusavam a ir, com medo do crime, dos traficantes, das casas degradadas, da possível morte. Mas era aí que estavam as casas baratas, os armazéns grandes e muitas vezes abandonados, onde os putos podiam viver, fazer bandas e tocar a qualquer hora, sem serem importunados pelos vizinhos. No núcleo de Brooklyn nascia uma das facções da cena indie, bandas novas ainda sem contrato ou discos editados. Os Yeah Yeah Yeahs eram amigos dos Tv on the Radio (Dave Sitek chegou a conduzir a carrinha dos amigos durante uma digressão) e dos Liars. Os vizinhos ou eram marginais ou aspirantes a músicos, ou as duas coisas. Encontravam-se no café, em salas de concertos, na lavandaria self-service. Ouviam as coisas uns dos outros, davam dicas, apoiavam-se, partilhavam material e até os agentes. Por lá andavam, na mesma altura, os Fiery Furnaces, nascidos em 2000. Era uma cena sem realista ambição: mesmo quem se achava uma grande coisa não tinha grande esperança em ter sucesso e andar pelo mundo como rockstars. Se lhes dissessem: podes tocar pela cidade e viver moderadamente da música, todos teriam assinado.

Aquilo que fez a cena explodir, de repente, foi o aparecimento dos Strokes. Formados em 1998, eram conhecidos da malta local, tão impressionada com a sua música como com a sua imagem. Os Strokes eram absolutamente cool. Jovens, bonitos, destemidos, com uma mentalidade e uma actuação típica de um gang unido, vinham de boas famílias mas viviam como os outros: trabalhavam em empregos da treta de dia, e a noite era passada de bar em bar, encharcados em álcool e drogas, absorvendo o finalzinho de uma Nova Iorque decadente que estava a mudar para sempre. E eles sabiam-no.

Como tantas vezes aconteceu com artistas ou grupos americanos (até Hendrix, mais de 30 anos antes, o havia sentido), o rastilho acendeu-se em Inglaterra, para só depois se espalhar aos Estados Unidos. Is this it, o incrível disco de estreia dos Strokes e o álbum mais importante do movimento, foi editado primeiro em Inglaterra, pela Rough Trade, e explodiu. Enquanto publicações americanas começavam timidamente a dar palco a Casablancas e amigos, já os londrinos Melody Maker e New Musical Express – sempre obcecados em decretar qual a “next big thing” – lhes davam capas. Foi a Inglaterra a primeira digressão internacional dos Strokes, ainda o disco não tinha saído em casa. As publicações inglesas, embaladas pelo grunge e pela Britpop, estavam realmente no auge da sua influência, e foi esse hype que se foi instalando também em Nova Iorque, onde as maquetes  e o EP The Modern Age, dos Strokes, andavam de mão em mão entre os conhecedores, as grandes editoras os disputavam com jantares e festas extravagantes e os seus concertos enchiam. Tão importante como encherem era quem compunha esse público: havia tantas miúdas como gajos, e na verdade tanto umas como outros queriam dormir com os Strokes. Na assistência, conviviam lado a lado músicos sonhadores mortos de fome que queriam ouvir a grande esperança da cidade como as mais famosas supermodelos do mundo, atraídas pelas drogas e pela coolness descuidada mas inconfundível dos cinco rapazes.

Os Strokes, em 2001

Tudo isto podia ser importante mas não chegaria não fossem as canções. Os Strokes eram enérgicos, roqueiros, estilosos, mas a sua música contrariava a tendência shoegaze do que era muita da cena rock antes da sua chegada: um público de gajos mal vestidos que, se estivessem muito entusiasmados, até batiam o pézinho, sem sair do lugar. Com os Strokes, esse paradigma mudou. A sua música era rock mas era para dançar, para curtir, para apanhar uma moca, para beijar na boca e acordar na tarde seguinte sem saber muito bem onde se estava, afinal.

Is this It era o disco mais aguardado pela cena de Nova Iorque em muito, muito tempo, com data de edição prevista para 25 de Setembro. Como sabemos, a 11 desse mês, deu-se o ataque às Torres Gémeas, o ataque ao coração de Nova Iorque. Não só esse facto adiou a saída do disco para Outubro como provocou uma espécie de reacção dos nova-iorquinos e dessa geração de miúdos que faziam música como o sonho de um dia darem o salto. Enquanto a cidade chorava, poucas semanas depois dos ataques essa fauna começou a sair à rua, enchendo os bares e os clubes de rock, tomando ainda mais drogas (ganza, cocaína e comprimidos variados eram a ementa da época) do que antes, curtindo ainda mais do que antes. E, sobretudo, atirando-se à música ainda com mais fome do que antes. Se tudo podia mudar de um momento para o outro, se a própria vida podia terminar num ataque sem aviso, havia na verdade muito pouco a perder.

O sucesso imediato dos Strokes e esse estado colectivo de energia foram os elementos essenciais que se espalharam rapidamente por todo o “movimento”, que na verdade ainda não era reconhecido como tal.

De repente, os concertos multiplicaram-se, e coisas estranhas como os Moldy Peaches (de Adam Green) eram convidados para ir em digressão ou tocar em galerias famosas de Manhattan. As editoras acordaram e tinham uma missão: queriam contratar os próximos Strokes. Este era o último momento do longo reinado de glória e os orçamentos ainda eram absolutamente incríveis. Tornaram-se material de lenda os contratos oferecidos aos Fischerspooner e houve uma batalha pela assinatura dos Yeah Yeah Yeahs. Os Interpol (de Manhattan, tal como os Strokes) são assinados, os TV on the Radio também, enquanto os Rapture caíam nos braços da EMI mas gravavam e namoravam com a recém-criada DFA Records, de James Murphy, que pouco tempo depois viria a subir ele próprio ao palco com a influentíssima criação dos LCD Soundsystem.

Murphy, mais velho que o resto desta malta, é também um caso paradigmático do movimento. Um verdadeiro maluquinho da música, dos discos e do estúdio, viu a sua vida mudar quando tomou ecstasy e descobriu que talvez não soubesse dançar, mas gostava ainda assim muito de o fazer. Pegando naquilo que andava a construir com os Rapture e que os Strokes também faziam de forma mais subliminar, Murphy construiu os LCD Soundsystem, efectivamente fundindo mundos até aí separados e quase antagónicos: o da música de dança com o rock. De repente, a malta do rock já dançava sem medo, e a malta da eletrónica deixava-se conquistar pela energia e pelo factor cool do rock independente. Muito do que veio a seguir se ficou a dever a essa improvável mas vencedora fusão.

Antes do movimento indie rebentar, bandas como os Hives ou White Stripes já andavam a fazer caminho na regeneração do rock

Vamos adiantando a conversa mas também é importante voltar atrás, e também sair de Nova Iorque. Os White Stripes, de Detroit, já andavam no circuito há uns anos, e apanharam a onda até se transformarem, com Elephant de 2003, em cabeças de cartaz do movimento do revivalismo do rock. Bandas nascentes como os National, os Kings of Leon ou os Killers também beneficiaram do facto de, de repente, haver toda uma audiência ávida por voltar a ouvir música de guitarras e bandas novas. Os Strokes, outros percursores nova-iorquinos e os White Stripes fizeram, no fundo, aquilo que os Nirvana haviam feito dez anos antes: abriram todo um filão demográfico para, mais do que um estilo de música, uma atitude perante a música rock, a música alternativa, novos sons e novos projectos. Esse filão beneficiou bandas anteriores como os australianos The Vines ou os suecos The Hives, todos praticantes deste rock garage que pegou de estaca um pouco por todo o lado.

No Reino Unido, os primeiros a saltar a bordo foram os Libertines, cujo vocalista Pete Doherty conhecera os Strokes (e lhes deu uma valente seca) aquando da sua primeira passagem por Londres. Um pouco mais tarde, os escoceses Franz Ferdinand tomaram o mundo de assalto com as suas canções e as suas guitarras gingonas e saltitantes. No Canadá, nasciam os Arcade Fire em 2000, chegando a meio da década como dos projectos mais interessantes e seguros de toda a cena.

De todos estes artistas que falamos, não é fácil nem sequer necessário encontrar um padrão musical muito estrito que una os pontos. Foram todos passageiros e protagonistas da auto-estrada aberta com estrondo pelos Strokes, dando a uma nova geração os seus artistas e não os dos seus pais (embora os Strokes fossem grandes fãs do grunge, aquilo que mais ouviam enquanto adolescentes). A força desse movimento foi tal que, ainda hoje, basta olhar para os cabeças de cartaz dos grandes festivais. O que encontramos aí não foge muito de: clássicos de sempre, tipo Metallica ou Springsteen; algum hip-hop (que hoje em dia domina cada vez mais a rádio e é mais popular com as gerações mais jovens); ou bandas desse boom do garage rock de 2001 em diante, sejam os Strokes, os Arcade Fire ou herdeiros/beneficiários como os Arctic Monkeys (Alex Turner, canta, no último disco: “I just wanted to be one of the Strokes”).

A meio da década apareceram os Arcade Fire, um dos projectos mais interessantes vindos da cena indie

A porta foi aberta e muitos se juntaram, desde os também nova-iorquinos Vampire Weekend aos Maximo Park, passando pelos Black Keys, pelos MGMT, pelos Animal Collective ou pelos folksters Fleet Foxes. Todos beneficiaram desse caminho aberto, num mundo em que a internet era ainda uma coisa nascente e as músicas só podiam ser partilhadas em CD gravável.

A viragem do século foi uma viragem em muitos sentidos. Aquilo que o indie trouxe foi uma abertura do rock, longe da depressão sisuda do grunge e do purismo clássico. Um estilo capaz de integrar música de dança, tecnologia e electrónica, juntando elementos tão contraditórios como o espírito do punk e o brilho da pop. Um movimento feito para curtir a vida, sair à noite e dançar, em clubes em que, finalmente, havia tantas raparigas como rapazes.

Simbolicamente, há quem marque 2011 como o fim desse ciclo, coincidindo com os concertos – em noites consecutivas – dos Strokes e dos LCD Soundystem no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Seria o concerto de despedida da banda de James Murphy (entretanto ressuscitada e de volta aos discos e espectáculos) e o marco da consagração de dois grupos da cidade na sua sala mais emblemática. Os LCD acabavam, os Strokes faziam discos menos apreciados mas andavam de jacto privado. Os putos de Nova Iorque já não eram putos, muito menos puros, e o espírito de luta e caos e ingenuidade dos primeiros tempos estava perdido há muito.

2011, uma década depois do início, fica bem como ponto final, mas o movimento nunca acabou, talvez por ser tão heterogéneo. Há tanta música diferente inspirada e sobretudo potenciada por essa energia do início do século que a sua influência continua a fazer-se sentir. A dispersão trazida pela extraordinária democratização da internet e do streaming impossibilita que se formem novos movimentos e cenas globais, com o mundo estilhaçado num ultra-rápido caleidoscópio de singles, de estilos, de épocas e de micro-nichos, que dificilmente voltará a aglutinar realmente qualquer movimento colectivo.

No entanto, por mais que a fusão entre a pop e o hip-hop seja o estilo musical dominante hoje em dia, continua a não haver nada mais cool que um puto de jeans e casaco de cabedal, com uma guitarra nas mãos.

Os putos do rock voltarão. Como sempre voltaram.

 

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