Nem só de canções vive Nick Cave. Também nos livros o podemos encontrar, por vezes tão cruel e tão exposto como em algumas das suas mais conhecidas composições. Anjos, burros e um certo caixeiro viajante são bem a prova disso.
Aqueles que seguem atentamente o percurso de Nick Cave sabem bem que a sua arte não se esgota nas canções. Elas são, naturalmente, a sua essência e o seu verdadeiro âmago, a maneira mais direta de se expressar e o seu ganha pão há já muitas décadas. Sobre essa nobre arte, serão poucos aqueles que não lhe reconhecem o devido mérito, o génio que teima, disco após disco, em não se esgotar, continuando uma longa e fértil carreira, tantas vezes mutante de tão díspar, mas sempre repleta de novidades e motivos de interesse. No entanto, o australiano nascido em Warracknabeal, no estado de Victoria, no ano de 1957, desde há muito que se mostrou capaz de trilhar caminhos secundários, que por vezes se cruzam com o principal, mas que também dele divergem tomando outras formas e ganhando outro alcance. Na base de tudo está a escrita, o texto, a palavra que se espraia em poesia, em prosa, em textos dramáticos, em ensaios. Este é o lado que tentaremos aqui explorar, convencidos de que estas linhas talvez mais não sejam do que uma simples orientação, uma tímida forma de abrir caminho para que se conheça um pouco mais e melhor a obra daquele que consideramos um dos grandes artistas do nosso tempo.
Foi aos 31 anos que Nick Cave publicou o seu primeiro livro. King Ink, foi esse o título escolhido, mais não é do que uma coletânea de letras, poemas, peças de teatro e outros textos avulsos, alguns em forma de pequenos contos. Corria o ano de 1988 quando a Black Spring Press publicou essas 193 páginas inaugurais. Aqui se encontram as letras dos The Birthday Party, assim como as dos primeiros dois álbuns dos Bad Seeds. A visão negra de existência começava a ganhar em formato de papel. O homem e a sua complexa relação com Deus e com o diabo, com o cristianismo, com as agruras da mente e com o desespero do vício, esses foram os assuntos que povoaram sempre o particular universo criativo de Cave, assim como a dor, a morte e o amor. Tudo isto já se encontra, embora ainda de forma algo embrionária, em King Ink, que nunca chegou a ter edição em Portugal. Mais tarde, em 1997, a mesma editora britânica publica King Ink II, novo conjunto de textos que vão desde o período de Tender Prey (1988) até a The Boatman’s Call (1997). O livro, no entanto, não se esgota nesse conjunto de letras de canções, apresentando textos feitos por Nick Cave para outros artistas, assim como para algumas bandas sonoras, como as dos filmes de Wim Wenders, por exemplo (Faraway, So Close! e Until The End of The World).
O primeiro romance de Nick Cave surge um ano após King Ink. Desde 1985 que o seu autor desejavaescrever um livro de fôlego, e essa ideia surgiu a partir do momento em que foi viver para Berlim. And The Ass Saw The Angel foi redigido durante três anos, com Cave fechado no quarto do seu apartamento da capital alemã. A droga andava fortemente de mãos dadas com Nick Cave e diz-se que algumas passagens do texto original terão sido escritas com sangue das seringas usadas diariamente pelo músico.
O enredo da obra conta-se em poucas palavras. Euchrid Eucrow, o protagonista, é um indivíduo que nasceu mudo, filho de um casal problemático. A mãe é alcoólica e o pai é um homem bastante perturbado, vivendo obcecado em torturar animais. Tudo isto acontece num local da América profunda, onde proliferam profetas que fazem do fanatismo religioso o seu modo de vida. Euchrid Eucrow é, portanto, um desvalido, um ser marginalizado, solitário e sofredor, vítima das constantes agressões da mãe e da indiferença do pai. Pelo meio das várias peripécias do enredo, uma menina órfã é tida na comunidade como eleita de Deus, mas Euchrid não a vê dessa maneira, isolando-se cada vez mais de tudo e de todos, até decidir vingar-se daqueles que fizeram da sua vida um autêntico inferno. A Bíblia é uma referência constante em todo o romance, todo ele escrito com claras influências da escrita gótica que Cave tanto aprecia. O horror, a perda, a dor, a morte e o sofrimento (assuntos sempre presentes na obra musical de Nick Cave) são o prato forte do texto. O que dele resulta é uma prosa difícil, com particularidades de linguagem que já foram, inclusivamente, assim como a obra na sua integridade, matéria de estudo universitário. Em Portugal, a primeira edição do romance surgiu em 1992, através da Editorial Estampa, com o título E o Burro Viu o Anjo.
O segundo romance de Nick Cave sai alguns anos mais tarde, em 2009. Bastante elogiado por alguns setores da crítica literária, The Death of Bunny Munro é uma obra bastante diferente da anterior. A escrita é mais segura, mais fluida, sem as marcas góticas do anterior. No entanto, as obsessões de Cave não arredam pé, mostrando-se, de quando em quando, nas pouco mais de trezentas páginas da edição original do livro. O enredo não é complexo: após o suicídio da sua depressiva mulher, Bunny Munro decide fazer uma espécie de road trip com o seu filho doente. O protagonista é vendedor de produtos de beleza para mulheres, pelo que, ao longo da obra, segue de carro estrada afora cumprindo escrupulosamente a visita a uma lista de casas de clientes onde tentará vender os seus produtos. Mas não só, Bunny Munro tentará também ter relações sexuais com todas elas, enquanto o seu filho espera por ele no automóvel que os transporta. O sexo serve como maneira de Bunny Munro exorcizar os seus traumas, problemas e dependências. No entanto, vai tomando consciência da sua própria loucura e de que a sua vida se encaminha para um poço sem fundo, um beco sem saída, passe a redundância. Mais uma vez, Nick Cave aborda temas que lhe são queridos. A solidão, o desespero, a loucura e a morte. Estes universos são constantes ao longo dos seus álbuns, e por isso não é de estranhar que apareçam também em tinta nas páginas dos seus romances. O livro teve edição portuguesa em 2010, pelas edições Alfaguara.
Até aos tempos de hoje, Nick Cave não voltou a publicar romances, mas a sua relação com os livros impressos não terminou em 2009. Seguiu-se, em 2015, a obra intitulada The Sick Bag Song, inspirada na turné americana realizada no ano anterior, 2014. Começou a ser escrita em sacos de enjoo (daí a sua designação) durante o percurso entre as vinte e duas cidades da digressão. É um longo poema épico que aborda, uma vez mais, temas do agrado do autor, sobretudo ligados ao significado da inspiração artística, bem como ao amor como fonte primordial da criação. A este propósito, o da génese artística e da sua interpretação, surge em 2020 o livro Stranger Than Kindness, título de um bem conhecido tema do disco Your Funeral… My Trial (1986). Nele podemos fazer uma fascinante viagem ao universo caveano através de imagens de objetos pessoais, desenhos, pinturas, fotografias, textos manuscritos do percurso de uma vida inteira. Stranger Than Kindness teve uma edição limitada a apenas 450 cópias e não conheceu, obviamente, publicação na nossa língua.
Outras incursões pela escrita levaram Nick Cave a fazer os guiões de dois filmes de John Hillcoat, The Proposition (2005) e Lawless (2012), assim como a redigir, por convite, o prefácio da edição da Canongate de O Evangelho Segundo São Marcos, o que se apresenta como mais uma prova do seu interesse por temas bíblicos.
Como se vê, há muito para ler de Nick Cave, assim como são largas as dezenas de livros escritos sobre o homem, o músico, o artista. O que aqui se fez, é bom recordar, tem apenas o propósito de incitar o leitor a conhecer uma outra faceta de um indivíduo que há muito faz parte das nossas vidas. Assim, estando o convite feito, resta-nos seguir caminho, esperando por outros capítulos que seguramente não tardarão a ver a luz do dia. Estamos certos que uma qualquer outra página já estará a ser virada no interior da cabeça de Nick Cave.