Os anos 90, em termos de música de qualidade, trouxeram-nos talvez três movimentos mais marcantes: o grunge, o trip-hop e a britpop.
O primeiro, um fenómeno regional que se tornou global, vindo da região norte-americana de Seattle, mas que conquistou todo o mundo antes de se tornar o tema oficial de um país, os EUA. O segundo, um movimento mais tardio e mais pequeno, composto por um pequeno grupo de bandas e artistas britânicos, como os Portishead, Trickie, Massive Attack ou Morcheeba, tendo a cidade de Bristol como grande berço. E o terceiro, a britpop, com um epicentro mediático em Londres, embora mais disperso em termos de origens.
Dos três movimentos, apenas a britpop teve a capacidade de ultrapassar as fronteiras meramente musicais e tornar-se não apenas um fenómeno estético (coisa que o grunge também conseguiu fazer), mas também, sobretudo, social. Só esta corrente, desde os anos 70, conseguiu, através da música e dos seus criadores, incorporar tanto uma fase cultural de todo um país.
As origens do fenómeno situam-se vagamente nos primeiros anos da década de 90, sendo 1992 a data mais consensual entre os estudiosos da matéria. É deste ano a edição de dois singles que viriam a marcar o imaginário colectivo e a ser adoptados pela imprensa como o início de algo novo e, sobretudo, intensamente british. Falamos de «Popscene», dos Blur, e de «The Drowners», dos Suede.
Os ingleses, habituados a exportar para o todo-poderoso e riquíssimo mercado norte-americano os seus colossos musicais (Stones, Beatles, Led Zeppelin, etc), viram, pela primeira vez em muito tempo, o mundo virar-se para os EUA como o farol do grande movimento musical dos anos 90: o grunge. Nevermind, o blockbuster indie dos Nirvana, havia sido editado em 1991, e o rastilho pegara fogo a toda uma série de bandas da mesma região, agrupadas num mesmo género, embora, de facto, o seu som fosse mais heterogéneo do que se fazia então pensar. Ainda que o movimento norte-americano ainda levasse mais algum tempo a levantar voo em todo o seu esplendor, a sua força levou à reacção da imprensa musical londrina, especialista em criar fenómenos e sobretudo campeões de algo que considerem efectivamente britânico.
Da parte musical, outros artigos deste «Especial Britpop» se encarregarão. O que se pretende aqui explicar é a razão pela qual, em termos sociais e políticos, a britpop nasceu, floresceu e depois morreu.
Foi, naturalmente, um movimento musical, mas foi sobretudo uma época de exaltação nacional: neste caso do Reino Unido. É por isso que, se o surgimento de várias bandas marcantes foi essencial para o nascimento do género, temos de procurar fora da música a raiz do panorama mais geral.
Em primeiro lugar, tivemos a reacção ao marasmo musical local: as grandes bandas britânicas dos anos 80 já haviam acabado (The Smiths) ou caído na irrelevância (The Cure). A década de 80 fica marcada por fenómenos muito populares, embora lamentáveis, com coisas como Wham! ou Culture Club à cabeça. A emergência do grunge, junto duma fornada de novas bandas que não se sentia de todo representada pelo que existia «em casa» foi o caldo perfeito para o nascimento do movimento.
Em termos políticos, o Reino Unido estava também a mudar. Em 1990, a tenebrosa Margaret Thatcher abandona finalmente o poder. Conservadora até à medula, os seus anos de governo até foram propensos ao surgimento de movimentos artísticos relevantes, todos eles de luta ou pelo menos de reacção à Dama de Ferro. Ainda assim, tal era a sua popularidade entre os votantes (que não entre os jovens, diga-se) que a Thatcher sucede um outro conservador, o aborrecidíssimo John Major. Apesar de o poder não ter exactamente mudado de mãos, muita coisa se alterou. Major era mais moderado do que Thatcher e pelo menos a sua notória carência de carisma foi um claro choque face ao que o antecedera. No mínimo, Inglaterra deixou de viver fascinada e obcecada com Thatcher, e isso foi o suficiente para uma mudança sensível na atmosfera. Major chega ao poder em 1990, e poucos anos depois dá-se o ressurgimento dos trabalhistas. O homem que conseguiu dar corpo a essa mudança estrutural foi Tony Blair, o homem da terceira via, o homem que iria modernizar e trazer para o século XXI um partido de centro-esquerda que havia sido, durante décadas, espezinhado por Thatcher. Blair só subiria ao poder em 1997, já a britpop ameaçava claramente perder gás, porém o efeito do seu entusiasmante surgimento na cena política britânica foi indissociável de um certo novo optimismo que tomou conta do país. Blair acabaria por se tornar o primeiro-ministro mais jovem de sempre e fez questão de surfar a onda da britpop como exportação e como marca de um novo, mais feliz Reino Unido.
Ainda na política, depois das brutais reformas dos conservadores, a economia do país dava sinais de retoma. Por outro lado, a saída de cena de Thatcher retirou o conflito ideológico da arena pública, deixando margem para uma certa homogeneização de esforços: por uma vez, os ingleses definiam-se como ingleses, e não como pró ou anti-Thatcher.
Por último algo que pode parecer despiciendo, mas que, no meu entender, desempenhou um papel importante: em 1991, os clubes ingleses regressaram às competições europeias de futebol, depois de terem sido banidos na sequência da tragédia do estádio Heysel, na qual os hooligans britânicos causaram numerosas mortes. Veja-se os Oasis (até hoje) e os Blur dos primeiros discos: tinham fãs de futebol escritos na testa. Um subtipo da britpop é, não por acaso, o chamado lad rock, de que hoje em dia os Kaiser Chiefs ou os Kasabian são os porta-estandartes. Estes fãs de futebol, estas gigantescas multidões feitas de jovens, eram compostas por miúdos que só haviam consumido rock mainstream tipo U2 ou vibrado com a explosão de Madchester, que fez a ponte entre o house e o acid jazz movido a ecstasy e o rock (vide Happy Mondays e, mais tarde, os Stone Roses). Estes lads encontraram finalmente em várias bandas, sobretudo os Oasis, uns líderes da sua geração. Os irmãos Gallagher surgiram do povo, afirmaram-se sempre do povo, chegando a fazer gala do facto de serem pouco instruídos e estarem mais interessados em mamar umas boas pints do que em revolucionar fosse o que fosse. De uma forma acidental e algo estranha, o ressurgimento do esplendor do futebol inglês acabou por ser mais um pouco de combustível para o veículo demolidor que foi a britpop.
Os novos ares ajudaram a cunhar outro termo, para além de britpop: viviam-se os anos da «Cool Britannia», talvez a expressão que melhor sintetize o sentimento partilhado pelos ingleses. Música, bola, economia e política: tudo se parecia alinhar.
Os Suede e os Blur acabaram por ser os primeiros campeões dessa coisa chamada britpop. Logo se lhes juntaram os muito especiais Pulp (que já andavam na luta há uma década, mas que só então subiram à Liga dos Campeões) e os omnipresentes Oasis. Não haveria britpop se não houvesse a música, claro. Mas também não haveria britpop se não houvesse uma indústria a alimentar o mito e a máquina. A imprensa musical britânica era então muito poderosa (continua hoje a ser), não dando ainda sinais de uma quebra de receitas, que viria a conhecer mais tarde. Mais: as próprias editoras abraçaram com fulgor estes novos campeões de vendas, e tudo fizeram para os promover junto da imprensa, não se importando para isso de criar guerras artificiais para apimentar as páginas e páginas que era preciso encher (e vender) semanalmente. O maior exemplo do fenómeno é, claramente, a chamada «Batalha da britpop», de 1995. Blur e Oasis lançavam, na mesma semana, dois discos aguardados com enormíssima expectativa, e o facto de, publicamente, as bandas dizerem mal uma da outra só ajudou a dar picante ao assunto. The Great Escape e What’s the Story (Morning Glory), tornaram-se, naturalmente, dois discos incontornáveis do movimento, mas marcam também o ponto alto da obsessão mediática sobre o fenómeno.
A definição da britpop, em termos puramente musicais, não é exactamente fácil. Ainda assim, tentemos: bandas britânicas, com um pop rock à base de guitarras, exaltando ou pelo menos retratando o que era ser inglês, cantando com os seus sotaques regionais e com referências – nas letras e estéticas – ao Reino Unido.
A coisa ainda durou uns bons anos (até ao final da década), embora muito boa gente aponte 1997 como um ano de fim de reinado: como símbolos o lançamento de Ok Computer, dos Radiohead, e o domínio global das plastificadas Spice Girls. Por motivos diferentes, é certo, mas há uma dose de razão neste raciocínio. Se os Radiohead, com esse disco, trocavam a feelgood pop por algo mais sombrio e mais complexo, a girls band mostrou um Reino Unido desejoso de se render aos seus imutáveis tiques camp, com umas quantas moças pouco vestidas que também empunhavam a Union Jack, embora sem qualquer talento além de uma pop básica e formulaica.
A verdade é que a britpop durou enquanto duraram os bons discos britpop. Depois aconteceram algumas coisas: ou começavam a sair discos menos bons, ou começavam a sair discos demasiado bons (no sentido em que buscavam algo mais do que a simplicidade da pop muito bem feita da britpop).
Como exemplos de discos menos bons temos Be Here Now, dos Oasis, em 1997, o álbum que mostrou os Oasis ainda vivendo na sua fórmula de sucesso, enquanto embriagados talvez pela mesma. É aqui que a banda dos irmãos Gallagher dá um passo maior que a perna, entregando-se com todo o fulgor à sua obsessão de serem os novos Beatles e, pior, levando essa afirmação a sério. Perdeu-se, nesse disco, a simplicidade dos discos anteriores e sobretudo a presença de várias grandes malhas. Os Oasis não tinham mãos para ser mais do que foram nos dois primeiros discos, e isso ficou claro em Be Here Now e nos álbuns seguintes.
Como exemplos de discos “demasiado bons”, no sentido em que buscavam novos horizontes mais experimentais, apontámos já o enorme OK Computer, mas podemos também focar-nos em Blur, também de 1997. Enquanto os Oasis procuravam dar profundidade à fórmula e falhavam, os Blur rasgavam a fórmula. Esse disco traz algum pop, é certo, mas também um pouco de punk e uma boa dose de experimentação. Uma extraordinária reacção aos dois “very british records” anteriores, os clássicos da britpop Parklife e The Great Escape. This is Hardcore, dos Pulp, de 1998, é outro exemplo. Como reacção ao colossal sucesso de Different Class, a banda de Sheffield buscou um disco quase conceptual, não sendo segredo que o consumo de drogas, nomeadamente a cocaína, contribuiu para alguma paranóia dominante nesses tempos.
Depois, e ainda em termos musicais, começaram a surgir novos fenómenos no Reino Unido. O mais evidente de todos foi o trip-hop, que conseguiu fazer a ponte entre os jovens negros e brancos como a britpop nunca foi capaz de fazer. Mais, a britpop havia dado de novo à juventude britânica vários anos consecutivos de obsessão pública e mediática com a música, dando-lhe uma bagagem de aprendizagem que lhe permitiu ter os ouvidos abertos quando outras coisas de qualidade surgiram. E, diga-se, vários discos de trip-hop dessa altura eram mais complexos e mais interessantes do que o que a britpop estava a oferecer. Mais tarde, já no final da década, surgem dois fenómenos que viriam também a divergir a atenção dos fãs: os Travis e os Coldplay. The Man Who, de 1999, e Parachutes, de 2000, foram dois colossos de vendas, levando a um pequeno fenómeno baseado num pop mais acústico e mais intimista. O público estava pronto para coisas novas, e o grande sucesso destes dois discos foi prova disso mesmo.
Por outro lado, o próprio movimento foi crescendo até ficar balofo. Quando, em Agosto de 1996, os Oasis realizam dois concertos esgotadíssimos em Knebworth – com 2,5 milhões de bilhetes solicitados e obviamente não satisfeitos, isso marcou o pináculo do movimento, que simplesmente se tornou demasiado grande e omnipresente. Quando Liam Gallagher, um puro lad do pub, casa com Patsy Kensit, tudo se compõe nesse sentido. Kensit, uma actriz de pouco talento mas enorme reconhecimento, era uma figura de primeira linha na aristocracia artística britânica. Quando Liam e Patsy surgem na cama de ambos, embrulhados numa Union Jack, era já a britpop estabelecida, e a parodiar-se a si mesma. Por esse altura, não era apenas Liam e Damon quem tinha crescido. Também os ‘lads’ haviam transitado da adolescência para a idade adulta e arranjado empregos. A economia crescia e não apenas criada emprego, estava a estabelecer-se um paradigma da competitividade no trabalho, uma herança eventualmente nefasta deixada por Tony Blair à Europa. Já não havia tempo para obcecar com as nossas bandas preferidas; ao invés, uma semana duríssima de trabalho, e um fim de semana gasto a correr, por cima de litros de ‘pints’ e muita cocaína. Bem-vindos ao século XXI…
Em termos sociais, há um outro fenómeno absolutamente indissociável da quebra do movimento, porque marcou a quebra de ânimo de toda uma nação. Em Agosto de 1997, princesa Diana morre num acidente de automóvel num túnel em Paris. O Reino Unido entrou num profundo luto. Finalizadas as cerimónias públicas, as pessoas refugiaram-se em casa, junto dos seus, como se tentassem dar sentido ao que acabara de acontecer àquela que seria, provavelmente, a figura pública mais querida de Inglaterra.
Na política, Blair começava a mostrar os dentes. Por debaixo da capa da “terceira via”, a modernização do socialismo que o levou ao poder, estava na verdade uma agenda profundamente neoliberal, de flexibilização das regras laborais, corte de benefícios públicos e um pragmatismo nas relações internacionais que terá deixado Thatcher orgulhosa. Chegando ao poder em 1997, foi progressivamente aproximando as suas posições das de George W. Bush, no que viria a dar as invasões do Afeganistão e do Iraque, após o 11 de Setembro, com base em “provas” falsas. Mais uma vez, a sociedade britânica dividia-se, e morria mais um pouco do caldo cultural que havia propiciado toda a força do surgimento e florescimento da britpop.
Hoje em dia, no ano em que se comemora de forma relativamente oficial o vigésimo aniversário do movimento, é curioso ver a forma como os ingleses olham para a britpop. Por um lado temos a celebração da extraordinária música que se fez nesses anos, com várias reedições de luxo de discos absolutamente essenciais. Por outro, na vertente cultural do movimento, o que se lê vindo de Londres é uma amargura estranha. Esses anos 90, 0s “noughties”, foram uma época em que os britânicos se fecharam de tal forma sobre a sua própria cultura que houve uma espécie de ressaca. Muitos dos protagonistas dessa época falam agora dela como uma festa demasiado longa, em que o entusiasmo era tal que todos os excessos eram permitidos. Jarvis Cocker como jurado numa espécie de “Ídolos” da altura; Noel Gallagher discutindo futebol e política com Tony Blair; os Oasis comprando Rolls Royce personalizados; os Lightning Seeds compondo o hino do Euro 96, que se realizou em Inglaterra. No fundo, um movimento artístico que se embriagou de atenção mediática e se tornou preguiçoso, balofo e indulgente com o seu próprio significado artístico, que estivera na origem de tudo.
Qualquer que seja a leitura mais lata que se faça (e que tentámos fazer com este texto), o que fica de essencial da britpop é a música. Algumas dezenas de discos incontornáveis feitos num período em que tudo parecia possível. Celebremos então a música, aquilo que nos faz sonhar, amar e apaixonar, uma e outra vez.
excelente texto! parabéns, são poucos os que lembram do clima social, cultural e político da época quando falam de Britpop (dos textos que li pela internet a fora, ao menos são vi isso), focando-se somente à música.