Muito mais do que a resposta britânica aos Strokes, o álbum de estreia dos Libertines veio salvar uma nação do aborrecimento que assolava as tabelas de vendas. Não dominaram o mundo, nem sequer a si próprios, mas rebentaram todas as portas ao entrar em cena.
Em outubro de 2002 já nada era como tinha sido. Um atentado mudou o mundo, a gloriosa Britpop era um incêndio em fase de rescaldo, os Coldplay dominavam as tabelas de vendas mas ainda não se tinham tornado patetas-alegres fluorescentes, e ainda teríamos de passar pelos Keane até sermos salvos pelos Arctic Monkeys.
Até que, a um canto da sala, a porta é partida ao pontapé por Pete Doherty e Carl Barât, príncipes de Camden, trovadores-rufias impecavelmente arranjados e desarranjados ao mesmo tempo. Um de fato, gravata fininha e chapéu Trilby, o outro de camisola de alças e casaco de cabedal; um filho de um militar e o outro criado numa comuna neo-hippie. Uma união outrora impossível entre um mod e um rocker, alicerçada numa química que esbatia permanentemente a distinção entre bromance e homoerotismo, para delírio da imprensa.
A arma que empunham chama-se Up the Bracket, álbum de estreia dos Libertines, produzido por Mick Jones dos Clash. Em 12 temas e menos de 37 minutos (mais de metade das canções não chega aos três minutos de duração) cabe um motim, uma psicogeografia londrina, um cabaz de referências culturais, desde a poesia de Emily Dickinson à comédia pós-guerra de Tony Hancock, passando pelo storytelling numa canção pop perfeita dos Kinks ou dos La’s.
O álbum abre com “Vertigo”, um riff frenético em que Barât toma as rédeas com uma displicência calculada. Doherty junta-se num ping-pong de riffs, backing vocals que ora são harmonias ora são só berros. Mick Jones assegura que a secção rítmica (composta por John Hassall no baixo e Gary Powell na bateria) não cai do comboio, promove o som rasgado mas quente e assume a herança punk nas imperfeições das guitarras, das vozes e até da letra num backing vocal que a dada altura não bate certo com a voz principal. A declaração de intenções está feita.
A faixa seguinte, “Death on the Stairs”, mantém o ritmo acelerado e um riff orelhudo a abrir os procedimentos. A letra começa com uma narrativa jocosa por Barât, que traz uma refugiada da guerra na Eritreia para aventuras caóticas num bairro qualquer do norte de Londres. Na segunda metade, Doherty toma o comando e tudo fica mais soturno, potencialmente alusivo ao início do seu contacto com a heroína, que o mantém em cabeçalhos de tablóides até aos dias de hoje. A temática mantém-se no terceiro tema do álbum: “Horrorshow” faz precisamente o que diz no rótulo e passa o tempo a tentar não colapsar, ou citando a letra “lenta e aguçadamente lixar-me até à morte”.
Daqui seguimos para “Time for Heroes”. Um hino de uma geração, uma ode aos putos estilosos nos motins do Primeiro de Maio de 2000 em Londres, uma sequência de acordes emprestada por “Down in the Tube Station at Midnight” dos Jam de Paul Weller (outra obra-prima sobre violência urbana), um “anti-solo de guitarra” nas palavras do especialista em “anti-solos” Graham Coxon dos Blur, e a observação tão irrefutável como imortal de que há poucas visões mais angustiantes que a de um inglês com um boné de basebol. Será provavelmente a canção que garantiu o lugar no Olimpo aos Libertines, mas o álbum ainda vai a um terço do caminho. “Boys in the Band” volta a trazer a entrega blasé de Barât por cima de guitarras inquietas, mas no refrão vira-se tudo de pernas para o ar, o ritmo quebra e torna-se um singalong que tanto se assume como faz pouco de si próprio e de outros que tais.
A primeira metade do álbum fecha com “Radio America”, inesperadamente acústico e delicado, como uma demo de Pete Doherty inspirada na faceta mais folk dos Beatles que entrou de surra no alinhamento. Ouvindo com atenção, pode ser notada a cabeçada que um extremamente ressacado Carl Barât dá no microfone ao adormecer durante o take. Mas a programação habitual é retomada no tema que dá o título ao álbum. “Up the Bracket” começa com uma espécie de grunhido e ficciona um encontro recorrente com os gémeos Kray, líderes do crime organizado em Londres nas décadas de 1950 e 1960, a quem Doherty nega a revelação da morada de um amigo, mostra dois dedos (o equivalente ao dedo do meio no sistema de medição imperial) e foge, percorrendo ruas de Londres associadas à história dos Kray como a Vallance Road em Whitechapel ou a Caledonian Road em King’s Cross. Como bónus ainda se consegue ouvir no final do solo um “fuck off” deixado escondido com o rabo de fora por Mick Jones nas gravações, privilegiando sempre a vibe sobre a perfeição.
“Tell the King” volta a abrandar ritmicamente o álbum, mas prestando atenção à letra entende-se um primeiro sinal de tensão na dupla, com Pete a acusar Carl de o deixar ficar mal em entrevistas que faz sozinho e Carl a culpar o hedonismo de Pete (leia-se “permanentemente espatifado em álcool e drogas”) por ter de dar entrevistas sozinho, acrescentando um aviso de que a coisa não vai acabar bem. Mas também aqui reside parte do encanto desta ligação, a capacidade de até chateados um com o outro conseguirem fazer uma canção em conjunto sobre o facto de estarem chateados um com o outro, arte que teria o seu expoente máximo no segundo álbum com o emblemático single “Can’t Stand Me Now”. Em seguida, “The Boy Looked at Johnny” volta a meter prego a fundo com outra história ficcionada por Pete Doherty. Desta vez sobre um indivíduo e o seu companheiro (oficial ou de aluguer) em passeio por Nova Iorque mas com saudades de Londres.
Na entrada para o final do álbum, “Begging” começa por levar ao engano com um shuffle ambiental de bateria durante 40 segundos, ao fim dos quais a banda acorda e carrega nos pedais de distorção para acompanhar a performance vocal mais “raivosa” de Barât em todo o álbum, voltando a abrandar para um minuto final em que as guitarras perdem definição e protagonismo e a secção rítmica de Powell e Hassall carrega o testemunho. “The Good Old Days” é povoado por um cenário melancólico de mitos e lendas, começando na rainha Boadicea que comandou o combate à ocupação da Grã-Bretanha pelos Romanos cerca do ano 60 d.C. e acabando na viagem do navio ficcional Albion que levará ou não os Libertines à terra prometida Arcadia, com a conclusão de que os “bons velhos tempos” não existem, são sempre aqui e agora, e que tudo dependerá da fé que tiverem no amor e na música.
O álbum fecha com “I Get Along”, um tema furioso, destravado, caótico, incendiário, sem grande densidade lírica mas com uma atitude que quase vinte anos depois ainda é garantia de mosh instantâneo. O desdém com que Carl Barât rosna “fuck’em” está emoldurado junto dos momentos que melhor definem os Libertines e Up the Bracket em particular, definitivamente um dos fenómenos culturais com maior responsabilidade em formações, ascensões e quedas de bandas britânicas na primeira década do século XXI.