O disco que alberga “Seven Nation Army” é a obra-prima incontestada dos White Stripes. Um equilíbrio perfeito entre riffs corrosivos e uma cativante sensibilidade pop.
Num certo sentido, os White Stripes sempre fizeram o mesmo disco: rock’n’roll da velha guarda ainda mais primitivo do que a versão original. Esmiucemos os seus componentes. A guitarra de Jack White? Um Jimmy Page punk. A sua voz esganiçada? Robert Plant em versão desenho animado. A bateria de Meg White? John Bonham com uma trombose e três AVCs em cima. Dizemos isto tudo sem malícia: a simplicidade dos Stripes sempre foi o seu principal activo.
Ainda assim, Elephant não é igual aos seus irmãos, é melhor: mais variado, mais memorável, mais consistente (White Blood Cells anda lá perto mas não tem “Seven Nation Army”). Não é só a crítica que o diz, o público também não é parvo: número 6 na América, número 1 no Reino Unido (os bifes são sempre mais perspicazes nestas coisas do gosto musical). Como é que dois gatos pingados da decadente Detroit, tocando rock rude e anacrónico, conseguiram chegar ao topo do mundo? Porque num tempo em que tudo à nossa volta parece postiço eles soam-nos a verdade. O que tem o seu quê de ironia pois sempre houve um forte elemento de artifício nos White Stripes: as três cores sempre iguais, o mito dos irmãos White, o fingimento de uma época que não é a sua. Por cada porção de verdade nos Stripes há sempre uma outra de encenação. E não foi sempre assim no rock’n’roll?
Segundo as nossas contas, 30% do charme de Elephant provém do riff demolidor de “Seven Nation Army”. São essas 7 notas que trauteamos bêbados na pista de dança e não a melodia sincopada cantada por White. Um riff mágico que põe as pessoas todas a saltar ao mesmo tempo, fazendo a mesa do pobre do DJ quase tombar. Não nos lembramos de outro riff assim, tão ubíquo, mais conhecido do que a própria banda que o criou.
O que não quer dizer que os restantes 70% não sejam encantadores. “In the Cold, Cold Night”, com a sua sensualidade à Peggy Lee, faz-nos perguntar por que raio é que Meg White esperou tanto tempo para cantar num disco dos Stripes. “It’s True That We Love One Another” é um dueto country delicioso, que não destoaria num disco de Nancy Sinatra com Lee Hazleewood. A letra é hilariante: “Jack, dá-me algum dinheiro para pagar as minhas contas / toda a cheta que te dou, Holly, estouras em morfina / Jack, ligas-me, se conseguires? / tenho o teu número escrito nas costas da minha bíblia”. “Little Acorn” evoca com ternura o moralismo cândido de um locutor da sua Detroit, para depois o subverter com o riff mais abrasivo do disco. A consistência na qualidade das canções é tal que nos damos ao luxo de ignorar pérolas como “I Just Don’t Know How to Do With Myself”, nada dizendo sobre esta bonita revisitação do clássico celebrizado por Dusty Springfield.

O álbum tem apenas o senão de ser doentiamente revivalista (como tudo o é quando Jack White está por perto). O disco foi gravado num estúdio londrino analógico, com equipamento obsoleto dos anos 50. No livrete está escrito com orgulho que em nenhum momento da produção de Elephant foi usado essa coisa demoníaca chamada… computador. Jack White tinha apenas 27 anos quando gravou Elephant mas a sua alma era já a de um velho rezingão. Antigamente é que era bom, resmunga White a cada instante, enquanto cita o “Tangerine” dos Zeppelin em “You’ve Got Her in Your Pocket”. A juventude está perdida, sempre a ouvir essa tralha do hip-hop, rezinga Jack, fingindo-se John “Walrus” Lennon em “There’s no Home For You Here”.
O programa estético de White – reduzir o blues e o rock’n’roll até à sua mais primitiva essência – é legítimo e fascinante. Tem apenas um ligeiro senão: já foi feito. Howlin’ Wolf, Stooges, MC5, Captain Beefheart e Gun Club foram alguns dos ilustres primitivistas que os Stripes agora se limitam a evocar. White parte da premissa reaccionária de que o rock’n’roll é uma forma fechada que é preciso preservar. Ora quando os Led Zeppelin pegaram no velho blues de Chicago e o transformaram na acidez de “Whole Lotta Love” eram movidos pela volúpia do futuro e não pela preservação museológica de uma velha forma. White desistiu do incerto, traindo assim o rock que tanto ama. O problema da pop moderna não é esquecer a tradição, como White argumenta, mas justamente o contrário: um excesso de reverência pelo passado. Elephant é um dos melhores discos de rock’n’roll do novo milénio, ninguém o nega, mas se fosse ouvido em ’73 não chocaria o gosto de então, e se aparecesse em’ 83 seria proscrito como antiquado. Jack White é o Ferrão da Rua Sésamo, sempre resmungando contra tudo e contra todos, mas sem nunca ter a ousadia de sair do seu velho caixote. O que é uma pena: o Ferrão sempre foi a nossa personagem favorita, quase tão fascinante como a do rabujento Jack White. Sai do caixote, amigo Jack, rogamos-te. Precisamos de gente com o teu talento e mau feitio para que o rock continue vivo e perigoso. Nem um exército de sete nações nos parará então…