Man Alive! apresenta-nos a um Archy Marshall mais crescido, mais focado, e mais claro das ideias – num álbum que remenda muitos dos pecados de The Ooz e que nos volta a encher de entusiasmo para voltar a escutar King Krule com vontade.
O nome de batismo do mais recente álbum de Archy Marshall, ou King Krule (e em tempos Zoo Kid e Edgar The Beat Maker) não parece ter sido escolhido ao acaso. Man Alive!, completo com o êxtase de um ponto de exclamação cuja leitura implora considerar sincero, representa um acordar de um estado dormente que enfraqueceu até os pontos mais fortes do seu último álbum, The Ooz, lançado há três anos através da True Panther.
Muito mudou na vida de Marshall desde esse momento. Talvez o mais relevante seja reparar que, o rapaz que sempre se apresentou ao mundo sob a persona de um estranho alienígena solitário, tornou-se parte de algo humano e maior: em março de 2019, foi pai. O que pode parecer apenas um pedaço de cusquice da vida pessoal de um artista notoriamente privado na verdade é essencial para entender Man Alive!. Ao longo das catorze faixas que compõem o álbum, lançado entre a XL, a True Panther e a Matador, Marshall dá-nos a conhecer um novo ele, não menos deliciosamente bizarro, mas talvez mais crescido, com as ideias melhor arrumadas – como é costume os novos pais transformarem-se em adultos organizados.
“Cellular”, o primeiro tema do novo disco, apresenta-nos de imediato a um King Krule que logo nos soa mais presente, que se perde em reflexões sobre solidão e noticiários, sob um baixo serpenteante que nos recorda as suas influências variadíssimas – que vão desde o universo do hip-hop ou do jazz ao post-punk da sua Inglaterra natal. A sua voz, ora intencionalmente monocórdica, ora visceralmente carnal, repete vezes e vezes sem conta o mantra obsessivo “I phone my ex”, à medida que o tema encontra o seu fim. A voz de Marshall sempre foi uma das suas maiores armas, estendendo diante da sua discografia passada, presente e futura um mar de oportunidades de poesia cantada. Segue-se “Supermarché”, resultado do fascínio do músico pelo mundo fantasmagórico das conversas cruzadas pescadas no corredor do leite e cereais, um tema atmosférico na qual a cacofonia das baquetas e das cordas cresce até culminar em semelhante e repentina explosão. “Stoned Again” prossegue a viagem através dos baixos que exigem colunas de concerto – a voz de Marshall, agora oscilando por entre a bipolaridade de calma e raiva, tanto nos lembra um álbum de hip-hop como nos assombra com a memória de lendas de um punk enraivecido de outros palcos, terminando com um quimérico saxofone (cortesia de Ignacio Salvadores, cujas contribuições enchem Man Alive! de uma espécie de requinte porco de quem melhor sabe usar o instrumento).
São as guitarras aflitivas que dão o pontapé de saída para “Comet Face”, tema moribundo que busca pedaços de Otis Redding e Carla Thomas, uma homenagem camuflada que reencontramos mais tarde, no incorporar de peças melódicas de nomes como Ohio Players ou até de Nilufer Yanya – um testemunho ao conhecimento enciclopédico por parte de Marshall do mundo musical que o rodeia, que despoja em todos os seus discos para nos ensinar a nós também qualquer coisa.
Finalmente, a calma depois da tempestade – “The Dream”, “Perfecto Miserable” e “Alone, Omen 3”, caem umas sobre as outras como dominós ao sabor de uma brisa que se solta dos acordes doces da guitarra de Marshall, uma nuvem que passa, suave e leve, quase sem por ela se dar, no sentido mais positivo da metáfora. A guitarra encontra namoro com o saxofone, que desta vez, ao invés de urrar, sussurra-nos ao ouvido, em “Slinky”, na qual Marshall nos oferece um dos mais bonitos poemas de amor em Man Alive!, cantando: “I dreamt I was here before / Above wet pavements / Across deep blue skies she would soar / Leaving her engravement / And everything sunk its stress / But for my drunken mess / And if the pain compress / Then it’s something less to explain”. Marshall continua a escrever de forma tempestuosa de quem sente tudo ao mesmo tempo, mas existe na sua voz uma gravidade de quem já o fez mais do que uma vez e que se compreende cada vez melhor, em toda a sua confusão cada vez mais crescida.
Se a segunda metade do disco guarda menos tesouros, não é por isso que não encontramos nela diamantes em bruto; após “Airport Antenatal Airplane”, tema que já ouvimos Marshall compor melhor até mesmo neste disco, segue-se “(Don’t Let The Dragon) Draag On”, faixa que nos deu a conhecer o que viria a ser o quarto álbum do músico, em janeiro deste ano. As notas sonolentas circulam a voz distorcida de Marshall como uma rotunda interminável que nos obriga a fechar os olhos e a sonhar um bocadinho – transformando uma confissão de quem não se sente tão bem num sonífero necessário para um mundo complicado. Se em “Theme For The Cross”, a voz do músico quase se desvanece sobre o manto estrelado de piano e coros na faixa mais esotérica de Man Alive!, regressa em força em “Underclass”, um dos mais memoráveis temas do disco que certamente escapará a ouvidos menos atentos – uma banda-sonora para o amor como aquelas que só chegam às nossas playlists uma vez por ano, com sorte.
Man Alive! despede-se ao som de “Energy Fleets”, mais uma balada repleta de doçura extraterrestre à qual Marshall já nos habituara com composições passadas, e “Please Complete Thee” – e sua voz nunca soou tão dolorosamente humana quando pergunta a alguém “Why aren’t you near me? / What stars are you under?”. Ao som das marés-vivas de efeitos reluzentes que carregam de oceano as guitarras etéreas, o inglês diz adeus.
Ao fim de quatro álbuns, alguns melhores e outros piores, King Krule reinventa-se sem nunca se despedir da sua excentricidade discreta, que impossibilitou o mundo de o ignorar desde 6 Feet Beneath The Moon, de 2013. Nada se compara com a primeira vez que ouvimos a sua voz arranhada, as cordas da sua guitarra, a força da sua poesia, catártica e abstrata em igual medida. Mas Man Alive! sabe a algo quase novo, e enche-nos de entusiasmo mais uma vez para voltar a descobrir um King Krule que, do alto dos seus vinte cinco anos, tornou-se um homem.