Dylan oferece-nos uma comovente reflexão sobre a mortalidade, a arte e a memória. Estamos em crer que este miúdo vai longe…
Oito anos depois do mediano Tempest (2012), Dylan regressa aos originais em grande forma, com um disco coeso e elegante à Modern Times (2006). Fez-lhe bem revisitar no entremeio os oldies popularizados por Sinatra (Shadows in the Night, Fallen Angels e Triplicate), a melhor das oficinas para colar a sua voz escaqueirada e renovar a sua inspiração.
Rough and Rowdy Days prossegue com a estética vintage pós-Time out of Mind (1997), como se o rádio assombrado do carro só passasse rhythm and blues dos anos 50. O velho mestre relembrando-nos como era a música antes de ele próprio (a meias com os Beatles, vá) ter mudado todas as regras da pop nos revolucionários anos 60.
Nas bonitas baladas melancólicas que dominam o disco, há uma vulnerabilidade, e uma mágoa serena, inéditas na sua voz, um Dylan mais humano do que nunca. Num álbum repassado de morte, que abre com os versos “hoje, amanhã, e ontem também, as flores estão a morrer, como tudo um dia morre”, faz sentido este travo a noite escura. Claro que Dylan, o rezingão, raramente assume esta fragilidade. O mais comum é armar-se em valentão, desafiando tudo e todos com o seu delicioso humor negro. É neste misto de tristeza tranquila e bazófia magoada que se faz este grande disco.
A ondulante “I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You” é uma terna canção de amor, com uma bonita melodia que fica logo no ouvido. Em recentes entrevistas, Dylan garante-nos que não há sentidos obscuros na sua escrita, que tudo está à vista na superfície das palavras, mas, ainda assim, não temos a certeza a quem o narrador finalmente se entrega. Pouca diferença isso faz: seja a uma mulher, ou à própria morte, é sempre inútil resistir…
Na macabra “My own version of you”, Dylan tenta reconstituir o seu amor perdido, retalhando cadáveres, colando os melhores pedaços, insuflando-lhes vida à Frankenstein. O paralelismo com o seu próprio processo criativo é evidente: Rough and Rowdy Days é feito de dezenas de colagens de mortos que o antecederam: um verso de Walt Whitman aqui, um título de uma canção de Jimmie Rodgers ali, um riff de um bluesman obscuro acolá… A tradição da folk, de onde Dylan provém, sempre foi feita destes roubos gentis, vis plágios para os forasteiros, sinceras homenagens para os seus protagonistas. Só erguendo-nos sobre os ombros dos gigantes conseguimos ver mais longe.

Mas nem só de baladas nocturnas e intimistas vive Rough and Rowdy Days. Também há por aqui blues de Chicago à Jimmy Reed, mandando a casa abaixo com a sua estridente electricidade. A sua voz de gravilha ressente-se mais nestes temas enérgicos mas, convenhamos, nem com vinte anos Dylan era o Nat King Cole. Foi esse, aliás, um dos seus legados: quando se tem alguma coisa para dizer, a voz de passarinho deixou de ser um requisito.
Para além das baladas tristes e melódicas, e dos blues gingões e ruidosos, há “Murder Most Foul”, tão singular na sua estética que foi colocada à parte num segundo CD. Uma névoa etérea de piano e violino (a bateria sussurrante entra mais tarde) é a tela onde durante quase 17 minutos (foste, “Desolation Row”!), Dylan vai pintando, em quase spoken word, a morte de Kennedy e o seu pesado simbolismo: quando “a alma de uma nação foi arrancada, começando o seu lento declínio”. Não é a primeira vez que Dylan revela a sua visão apocalíptica, mas os tempos conturbados que hoje vivemos dão-lhe agora mais razão.
Para mitigar a mágoa, Dylan passa metade do tema a pedir as suas canções favoritas, dezenas de referências, de Cole Porter a John Lee Hooker, de Etta James a Charlie Parker, sem nunca incorrer na sempre artificial divisão entre alta e baixa cultura. Perante a decadência espiritual da sua América, só a arte pode salvar, parece dizer-nos. Nós concordamos, lavando os pecados do mundo na beleza pura deste disco.