E pronto, a hora chegou. Abriram-se as portas da ilusão a milhares de pessoas que há muito desejavam este regresso. O primeiro de quatro dias começou. E o Altamont esteve lá!
Para nós, o início da longa jornada começou na nossa língua, mas com paladar ligeiramente diferente. Sotaque bom, o da Mallu Magalhães, promovida ao palco principal. Sensibilidade na voz e samba no pé. Assim foi, numa ótima sequência de temas, misturando as do disco mais recente com outras mais antigas. A saber, a título de exemplo, “Fases da Lua”, “Barcelona”, “Deixa Menina”, “Sambinha Bom” (e foi mesmo, pois então), “Casa Pronta”. Foi um concerto sereno, tranquilo, a cara de Mallu, sorridente, feliz, grata por existir fazendo música entre nós. E nós também. Bonita e suave maneira de começar, com sotaque conhecido e próximo, o primeiro dia do NOS Alive 2022. “Enjoy the Ride”, a canção feita para a sua filha, também apareceu em palco. Mudou a língua, mas a linguagem musical continuou semelhante. Ainda bem. Era o que precisávamos. Foi bonita a comunhão. A menina Mallu diz que está “ficando velha”, mas não é verdade.

Do outro lado do recinto, ainda tocavam os Balthazar. A plateia estava bem composta para ouvir o grupo belga, com um grupo até bastante considerável de fãs a reconhecer as músicas e a apoiar a banda. Apanhámos as duas últimas músicas, já com bastante gente a dirigir-se para o palco principal, onde a seguir tocaria Jungle (uma escolha feliz de alinhamento) mas ainda deu para ouvir “Losers”, um dos singles do último disco da banda, Sand, de 2021, muito reconhecida pelo público. Ficámos com pena de não ter visto mais do que nos pareceu um concerto enérgico e bem-disposto.

Um pouco antes, a notícia do cancelamento de Clairo. Aviões que não voam, aeroportos onde não aterram. Enfim, o mundo atual também se faz disto. Quem sobrevoou os arredores do Palco NOS Alive com o seu som dançante foram os Jungle, com o seu neo-soul saltitante, talhado para festivais de verão. Foi o que aconteceu. Ninguém quieto, tudo a dançar. Quem esperou para ouvir os temas mais conhecidos dos britânicos, não deu o tempo por perdido. Se a memória não nos falhou, foram alguns, sempre com a voz “Bee Gees” (a citação a “Staying Alive” apareceu algures) de Josh Lloyd-Watson a manter acesa a chama rítmica bem musculada. São visitas mais ou menos assíduas, e foram, uma vez mais, recebidos em festa. Com quase uma década de existência, os Jungle foram conseguindo manter-se à tona da dançante cena inglesa. Apesar do concerto ter acontecido ao fim da tarde (não foi má, mesmo assim, a escolha do horário), talvez fizesse mais sentido em horário mais noturno. Mas isso importa pouco, a festa pode fazer-se a qualquer hora. E fez-se, especialmente com “Keep Mooving” e “Talk About It”.

Ainda fomos a tempo de apanhar os Modest Mouse, e aí (obviamente) que o panorama era bem diferente. O rock de guitarras da banda norte americana liderada por Isaac Brock continua a soar como há vinte anos. O som alternativo que os distingue continua firme e forte, e foram muitos os que foram saudar a banda no palco Heineken Stage. Ora ruidosos, ora mais contidos, os Modest Mouse tocaram muito mais cedo do que o previsto, beneficiando da ausência de Clairo, ocupando-lhe o lugar. A nós agrada-nos mais a onda lo-fi que também os caracteriza, mas que ontem nem sempre se verificou. No entanto, as guitarras soam sempre bem, é um facto, e depois de andarmos com as cabeças no ar com os Jungle, foi altura da pose mais low-head com os Modest Mouse.

The War on Drugs foram fiéis a si mesmos. O desert rock com sabor a Springsteen nunca engana. As entradas instrumentais longas em algumas das canções fazem lembrar, mesmo que ao longe, The Cure, por vezes, sobretudo se soubermos apreciar o peso das guitarras. Adam Granduciel continua a liderar a banda com o seu estilo particular de tocar guitarra. É bem verdade que os três primeiros discos causaram mais impacto do que os mais recentes (e já lá vão cinco), mas em palco tudo se dilui, tudo se mescla, e o concerto sai a contendo de todos. A pequena multidão que os viu e ouviu concordará connosco, principalmente quando se ouviram “Under The Pressure”, “I Don’t Live Here Anymore” (com direito a citação de Dylan) “Red Eyes”, “Deeper Understanding”, embora não exatamente por esta ordem. Foi um concerto adulto, de uma banda adulta que sabe muito bem o que faz e o estatuto que tem.

A meio de War on Drugs decidimos dar um salto ao Heineken Stage para o spoken rock dos Fontaines D.C. Num primeiro dia claramente dedicado ao rock (vários nomes fortes em dois dos palcos), os irlandeses foram caóticos no melhor dos sentidos. Alguma fúria, alguma sujidade, atitude de outros tempos, no palco dão tudo. Obreiros do rock. O pendor narrativo das letras (quando a pronúncia se deixa apanhar) é forte e direto. Aqui não há fatos e gravatas. Há sabor a rua e a luta. Por vezes, a melodia mais vincada, mas quase sempre rock de combate. Duro. Grian Chatten é um frontman expressivo e debita energia por todos os poros. Os restantes membros da banda também. São coesos. Com apenas três álbum em carteira, muitos dos temas do recente Skinty Fia foram apresentados. Diz a história que foi o prazer da música e da poesia que juntou estes rapazes de Dublin. E do meio do caos da sua atuação, ficou a marca “filth and fury” que os caracteriza. Lydon, Vicious e companhia devem estar orgulhosos. Grande tochada!

E, finalmente, The Strokes! Os cabeças de cartaz do primeiro dia surgiram em palco! Um pouco atrasados, mas lá chegaram. Retro-Strokes logo a abrir com “Is This It”. Por muito que se propague a ideia que os Strokes já pouco interesse vão tendo, convém fazer-lhes justiça e recordar que fizeram um dos álbuns mais importantes deste século. O que foram mostrando ontem teve alguns desequilíbrios (grandes, enormes derrapagens nos falsetes do Julian Casablancas), mas deram um concerto que honrou a importância referida. Não lhes exijam perfeição, não lhes exijam que toquem todas as notas no sítio certo. Strokes é rock como vai havendo cada vez menos. Ter um vocalista com álcool a mais no palco é rock n’ roll. Strokes é isso mesmo. Quanto às canções, “Bad Decisions” e “Someday”, entre tantas outras, constaram do alinhamento e fizeram o furor do costume. “Reptilia”, também. Nem tanto com “Hard To Explain”, uma vez que Casablancas enganou-se na letra e a banda teve de parar alguns segundos. Fizeram, em jeito de gozo, uma pseudo-cover de “Sofia”, canção da ausente Clairo. O entusiasmo que foram provocando no público foi grande, e acreditamos que a grande maioria saiu satisfeita. Foi um bom concerto de rock. Os Strokes, banda de meninos classe média com trejeitos que lembram os bons tempos do mítico CBGB, nunca mais conseguiram estar à altura do primeiro álbum, embora The New Abnormal tivesse deixado no ar a promessa do regresso à boa forma. Tal não aconteceu, de facto. E ontem, como bem se percebeu, foram algumas as fragilidades sentidas, embora a alma e o espírito do rock tenham sobrevivido a algumas peripécias do concerto. Tanto assim, que para acabarmos a noite em beleza, fomos bebendo umas cervejas com amigos em honra de um estilo que continua a unir pessoas. Isso é sempre coisa de valor!

Finalmente, ainda conseguimos passar em Parov Stelar para uns momentos de alegria. E aquilo que encontrámos foi uma gigantesca pista de dança, com muita gente fora da tenda a abarrotar, que seguia o concerto pelo ecrã. É impossível ficar parado com o ritmo de electro swing do músico e DJ austríaco Marcus Fuereder. Chegámos a tempo de ouvir “Chambermaid Swing”, um dos temas mais conhecidos, e de dançar ao som do saxofone e contagiados pela energia que a banda apresentava em palco.

Na despedida, Stromae para fechar o palco NOS. O músico belga, de origens ruandesas, de seu nome Paul Van Haver, veio a Lisboa para trazer a festa, com todas as cores e vários géneros musicais. O “maestro” de Bruxelas falou em inglês, francês e até arranhou o português, conseguindo cativar o público durante cerca de uma hora, nesta espécie de after do Alive. Uma boa estreia em solo nacional, num dos melhores concertos do dia.
Terminava assim o primeiro dia neste regresso do NOS Alive. O festival continua esta quinta-feira com o palco principal a ter Florence + The Machine, Alt-J e Jorja Smith como nomes principais e Dino D’Santiago, Nilufer Yanya, Seasick Steve e Inhaler no Heineken Stage.
Texto: Carlos Lopes com Cátia Simões || Fotografias: Inês Silva (excepto onde creditado)