O segundo dia do NOS Alive trouxe um calor imenso a Algés, mas também muito boa música. Variada, com momentos e geografias bem diferentes. Entre muitos e bons artistas estrangeiros, houve portugueses ao mesmo nível. Foi bonita, a festa.
Com o primeiro dia atrás das costas, o segundo vinha a passos largos e em nossa direção. Um bom punhado de bons concertos eram já passado. Havia que olhar para o presente e perceber o que tínhamos pela frente. Acima de tudo, mais uma jornada longa. Pelos nomes do cartaz, o dia parecia menos promissor do que o primeiro. No entanto, sabemos que há sempre a possibilidade da surpresa, do espanto perante novidades que podem servir os nossos apetites de forma exemplar e inusitada. Havia que manter a expectativa alta, “andar com fé” para mantermos a esperança que algum bom concerto nos viesse bater à porta.

A primeira espreitadela foi Expresso Transatlântico que, diga-se em primeira instância, é um bom nome, convenhamos. Trata-se da banda de Gaspar Varela, o menino querido da senhora Madonna, grande promessa da nossa guitarra portuguesa. Veio acompanhado de baterista, teclista, baixista e guitarrista elétrico. É inevitável não pensarmos nos Dead Combo, sobretudo pela ideia e pelo conceito instrumental. É um projeto promissor e interessante. As composições apresentam nuances bem variadas, há nelas algo de nosso, mas também de toda a Ibéria, digamos assim, sobretudo quando o trompetista (que é também o homem das teclas) se faz ouvir. Há por aqui sombra e sol, como nas touradas, embora esta festa não seja brava. “Azul Celeste” e “Mudar de Vida”, do gigante Carlos Paredes, foram momentos memoráveis. Há por aqui algo de novo e mesmo muito promissor. Sim senhor, o segundo dia do NOS Alive começou bem.

Com Celeste, eram nove em palco. No principal. O início free jazz foi de arromba. “Too proud, too loud”, o verso, arrancou placas e gritos. Depois, a voz impôs-se facilmente. Um vozeirão, de facto, na boa tradição das grande vozes negras. E música de classe, este neo-soul jazzístico. Tudo muito calmo, tranquilo, a pedir outro álcool que não a cerveja. Coisa com mais requinte, ao final da tarde, para retemperar emoções. Ao contrário do concerto anterior, em Celeste não há inovação, mas há história e raízes longas e profundas. A América está naquela voz, assim como algum sofrimento e melancolia. Como dissemos, tudo era classe e requinte no Palco NOS Alive. Até aquelas luvas verdes são dignas de registo e as imensas semelhanças com Amy Winehouse. Muita pinta. O concerto foi aquecendo, tornando-se festivo. Não dissemos que, afinal, o dia poderia surpreender? Celeste foi a segunda prova disso.
Antes que a fome apertasse, fomos até ao Clubbing Stage para ouvirmos Rita Vian. O concerto, diga-se, pouco se diferenciou daquele que havíamos visto, no passado mês, no Parque da Cidade, no Primavera Sound do Porto. É compreensível. E assim, todos os atributos e singularidades já nos soaram conhecidas. Há talento na voz e nas palavras de Rita, sem dúvida. E estes novos caminhos da música portuguesa são uma encruzilhada de destinos, lembrando as nossas mais profundas particularidades. Exotismo quanto baste, alguns arabescos sonoros e (alguma) alma lusitana. Parece-nos essa, a receita Rita Vian.

Quando a noite começava a instalar-se, mesmo que timidamente, Jorja Smith entrou no palco principal para um dos concertos mais esperados da noite. Mais soul, mais alma neste dia dois do Alive. O interessante na cantora britânica é o facto de nela haver leveza e maturidade, o que para alguém que se estreou apenas em 2006, convenhamos, é obra. Por falar em obra, os temas que Jorja Smith nos apresentou foram bem repartidos pelos seus trabalhos de longa duração, Lost & Found (2018) e Be Right Back, este de 2021. Mulher de causas sociais (algumas letras parecem revelar um pouco essa ideia), Jorja Smith irradiou simpatia e empatia. A sua figura é cativante. Nela existe ainda uma pitada de hip hop, soul, R&B e um pouco do seu estilo pessoal, combinando influências que seguramente passarão por Amy Winehouse (outra vez referida neste texto), mas também por Alicia Keys. Isso parece-nos mais ou menos seguro afirmar. O concerto foi escorreito e dinâmico e “Addicted” terá sido um dos momentos cimeiros daquela hora e picos de espetáculo. Por estranho que possa parecer à maioria de todos, e se quisermos aproximar os concertos da americana e da inglesa, talvez a nossa balança acabe por pender para a primeira.
Depois, mudámos de continente. África foi o destino escolhido e tudo pegou fogo. Aliás, Fogo Fogo. Talvez não tenha havido maior festa como essa. A verdade é esta: seja a que horas for, os Fogo Fogo incendeiam o que houver ao redor, e bem. Destes fogos todos gostamos. Foi dar ao pé e à anca no recinto do Wtf – Clubbing. Sempre a abrir, até o fôlego se esgotar. Oriundos da Casa Independente, em Lisboa, o sangue africano está-lhes nas veias e a transfusão de alegria rítmica que passaram para o público foi enorme. Juntaram mais calor ao calor do dia e da noite. Um show!

Florence + the Machine era, sem dúvida, o grande nome deste segundo dia do NOS Alive e, por isso, foi recebida com tudo a que tinha direito: coroas de flores, saltos, gritos, refrões cantados em uníssono, sorrisos a rodos e até lágrimas de emoção. E Florence Welsh, a alma da banda, descalça, com os seus longos cabelos ruivos e vestido vermelho escuro, retribuiu o carinho: pulou, dançou, correu o longo palco de ponta a ponta, conversou, fez pedidos e desceu à plateia para cantar com o público e emocionou-se, agradecendo os sorrisos e as lágrimas e oferecendo uma canção que não costuma cantar porque lhe lembra um momento da vida que gostava de esquecer (“Never Let Me Go”). Houve catarse, ao que parece. E, tudo isto, com uma voz sempre irrepreensível e inigualável. Mesmo que não se aprecie, há que reconhecer que a rapariga canta bem. Foi, por isso, uma hora e meia de euforia, emoção e de um alinhamento que equilibrou repertório novo e velho, até porque as canções mais recentes também já são muito bem recebidas, como é o caso de “My Love”, por exemplo. Well done, Florence Welsh!

Nilüfer Yanya foi atraiçoada pelo horário. Até deu dó. Muito poucas pessoas para a ver e ouvir. Não merecia tal coisa, a talentosa londrina. Mas o furacão Florence levou tudo à frente, provocando fortes danos colaterais. Mesmo assim, Nilüfer Yanya não se deixou derrotar e avançou para um concerto com a sua sólida marca. Temas densos, obscuros, tensos, com carimbo de tensão permanente. Três mulheres em palco e um homem. Yanya e o som que produz tem algo de Banshees, embora com batida mais contemporânea. Foi dia de mulheres cheias de pinta, este segundo do Alive. Nilüfer Yanya foi intercalando temas dos seus álbuns Miss Universe (2019) e do recentíssimo Painless, pescando ainda canções de vários dos seus EPs. O calor estava insuportável e o espaço pouco aberto do Palco Heineken não ajudou. Yanya tem alguma timidez que encanta e intimida ao mesmo tempo. Estas circunstâncias contraditórias dão-lhe um encanto particular, a ela e à música que faz. Apesar da escassez de gente, foi um bonito e sombrio concerto, onde não faltou “Rid of Me”, de P.J. Harvey.

Os Alt-J, a quem coube a talvez ingrata tarefa de atuar depois de Florence + the Machine, foram, como de costume, corretos, certinhos e ponderados. As canções soam exatamente iguais aos álbuns e a interação com o público é simpática e cordial, mas não efusiva. Há ali ama espécie de frieza nórdica que é difícil disfarçar, mesmo sendo eles de Leeds, Inglaterra. Ou seja, a ideia é que a música valha por ela própria e seja suficiente para entreter o público e pô-lo a bater palmas e a cantar. Resultou, sobretudo porque o concerto decorreu em estilo best of, com muitas canções do primeiro álbum que celebra já dez anos. Ainda assim, os temas do trabalho mais recente foram bastante bem recebidos, como foi o caso de “Chicago” e “Hard Drive Gold”. Só pecou por ser uma atuação curta – apenas uma hora – e, por isso, ter ficado a ligeira sensação de concerto-a-correr, apressado, do estilo “sorry guys, I have a plane to catch”.

Ainda fomos espreitar o que restava do concerto de Dino D’Santiago, o homem de quem todos falam e de quem todos gostam. Por isso, uma pequena multidão esteve irredutível, à frente do palco com a marca do precioso líquido amarelo, mesmo assim insuficiente para tornar a noite um pouco menos quente. O que Dino faz, como bem sabemos, coloca-nos em geografias conhecidas, sempre com os pés bem assentes no continente africano. Cabo Verde é a mãe da sua música, e como bom filho, Dino oferece-lhe carinho e roupagens adequadas aos tempos de agora, com eletrónicas de estilo que convidam a momentos dançantes. Depois do concerto no Coliseu dos Recreios, ontem foi a vez de se recriar no Alive. Foi assim com “Esquinas”, por exemplo, onde fez duplo papel, o seu e o de Slow J, ausente em palco na noite de ontem. Outros momentos bons foram “Brava (Carta pa Tareza)” e Krioulu”.
Fechou-se o segundo dia do NOS Alive, ia já a madrugada bem lançada. Era tempo de voltar para casa e tempo também de algum silêncio. Como saberão, o percurso ainda vai a meio, e daqui a pouco já estaremos de volta para um dia onde o rock vai ser mais pesado, com os óbvios Metallica à cabeça. Até já.
Texto: Carlos Lopes com Ana Baptista || Fotografias: Inês Silva