A apresentação d’ As Berlengas no Teatro Maria Matos não era sobre Benjamim, que saiu de si próprio, enquanto se referiu à sua discografia, às referências e à vida que o trouxeram até aqui, mas sim sobre a entrega completa de quem boia no mar bravo à procura de mais.
Dez quilómetros de ondulação e ventos fortes separam o arquipélago das Berlengas do Cabo Carvoeiro, em Peniche. Uma viagem de barco de meia hora, aparentemente interminável, permite a quem nela se aventura uma fuga do continente para três ilhas inabitáveis, onde o imaginário das necessidades criativas do espírito se materializam no azul do mar e nas gaivotas que planam no céu.
Um barco que navegue sozinho no mar, navega sobre toda uma outra camada de vida, na sua maioria, inalcançável e, por mais que rume a um destino concreto, viverá sempre o confronto entre a expectativa e a realidade que acaba por encontrar. No Teatro Maria Matos, esgotado, Benjamim entrou sozinho em palco e sentou-se ao piano em silêncio. “As Berlengas (Parte 1)” ecoou pela sala, que sustinha a respiração ante as imagens do oceano que eram projetadas por detrás do palco.
Este concerto constituía uma das três dimensões do disco As Berlengas, editado a 5 de abril deste ano, sendo as outras duas o disco propriamente dito e um filme, que há-de nos chegar algures durante o verão. Há seis anos, ainda antes de lançar o Vias de Extinção (2020), Benjamim começou a trabalhar neste projeto que descreve como megalómano, nascido de uma necessidade insaciável de fugir do seu próprio trabalho, do mundo, da realidade difícil de digerir. Quase como que um lugar para onde pudesse canalizar as suas dúvidas e frustrações e onde pudesse ver o seu trabalho criativo crescer sem restrições – alheias e autoimpostas –, as Berlengas (espaço simultaneamente mental e real) corporizaram a vontade que Benjamim sentia de contrariar o passo acelerado do mundo contemporâneo, em que as coisas têm o prazo de validade que a internet lhes decretar. “Farto de fazer canções”, como admitiu ao Altamont, e com vontade de provocar o ouvinte moderno de paciência curta e expectativas óbvias, o músico e produtor alimentou aquilo que começou por ser uma experiência individual pouco séria e trouxe ao mundo um projeto de 73 minutos e 20 faixas de música, banda sonora de um filme que não existia até passar a existir, e o concerto da passada segunda-feira.
Depois da chegada à ilha, a nado, sozinho no imenso mar selvagem, é tempo do desembarque. A banda, que reinterpretou em palco o disco que foi inteiramente tocado e gravado por um só músico, juntou-se: João Correia na bateria, Nuno Lucas no baixo, Manuel Pinheiro nas percussões e samples, Vera Vera-Cruz no teclado e nas vozes e António Vasconcelos Dias na guitarra, sintetizadores e vozes. O concerto atravessou o disco de uma ponta à outra, descrevendo as várias partes da jornada épica que ele constitui, nomeadamente o deparar com uma encruzilhada entre passado e futuro e a posterior grande libertação.
O concerto não foi só música – As Berlengas não são só um álbum, como já foi dito. O concerto foi uma forma de materialização de um projeto que envolve música, assim como o filme que ainda temos de esperar para ver é mais do que a montagem de imagens que são projetadas atrás da banda durante o concerto. O concerto foi uma reinterpretação em conjunto de um álbum gravado a solo, a banda sonora de um filme que só veio depois e ao qual a música também se moldou. A beleza d’ As Berlengas é que se trata de um projeto para sempre inacabado, ou, pelo menos, para sempre aberto a novas interpretações, em vários formatos. O filme, feito por Bruno Ferreira, também é um bailado, como sugerido pelo coreógrafo João Reis Moreira. Todos os objetos do projeto transformaram-se uns aos outros e é essa possibilidade de mudança contínua que lhe dá força para nos dar esperança.
A apresentação d’ As Berlengas no Teatro Maria Matos não era sobre Benjamim, que saiu de si próprio, enquanto se referiu à sua discografia, às referências e à vida que o trouxeram até aqui, mas sim sobre a entrega completa de quem boia no mar bravo à procura de mais – e esse mais, nos tempos que correm, pode ser apenas a paz de espírito. Do início ao fim, ouviram-se gaivotas na sala, que se tornou um espaço verdadeiramente imersivo, levando-nos às Berlengas, sob o luxo de esquecermos brevemente o mundo que deixávamos para trás.
Fotografias gentilmente cedidas por Vera Marmelo.