Durante uma hora e dez minutos, Tom Waits agracia-nos com extraordinários, variados e bem sonoros coices de mula. E depois de tanta boa, serena e melancólica pancada, o que apetece é voltar ao início, de sorriso bem vincado no rosto.
Foi número de sorte, o décimo terceiro álbum de estúdio de Tom Waits. Mule Variations triunfou como há muito não acontecia na sua carreira. Foi justamente endeusado e tido como um dos seus melhores trabalhos, não apenas para o ouvinte comum (embora pouco de comum tenha um fiel ouvinte de Tom Waits), mas também para a dita crítica especializada. Ganhou um Grammy, vendeu mais de meio milhão de cópias e foi votado como um dos melhores quinhentos álbuns da história da música de todos os tempos. Tudo bons cartões de visita, como é bom de ver. O próprio terá ficado ainda mais espantado com tudo isto do que qualquer outra pessoa no universo. Depois dos aclamados Swordfishtrombones (1983) e Rain Dogs (1985), o mundo teve de esperar vários anos até Tom Waits voltar de novo a espalhar cartas de trunfo como fez em Mule Variations, decorria o ano de 1999. Como se vê, foi longa a espera. No entanto, nesse longo hiato, Tom Waits não esteve parado, como aqui temos dado conta, mas Mule Variations é claramente de outro campeonato.
Se nos tem seguido religiosamente neste Especial Tom Waits, então é certo e sabido que conhecerá Mule Variations como as palmas das suas mãos. É um disco tremendo, como já sublinhámos, mas mesmo assim fica-nos bem referir e sublinhar algumas das suas grandes canções, alguns dos seus melhores momentos. O álbum está repleto de clássicos, é certo, mas há ainda alguns outros instantes que mereceriam melhor destaque, pensamos nós. Comecemos por esses, que de menos conhecidos, mas mesmo assim, nunca morrerão solteiros. Desde logo, “What’s He Building?”, tema que não é sequer canção, antes um monólogo algo spooky, delicadamente perfumado por ruídos que potenciam o lado claustrofóbico daqueles incríveis três minutos e vinte segundos. Que maravilha! “Black Market Baby”, por exemplo, parece uma carroça sonora que custa a iniciar o seu caminho. Soa a uma América distante, escrava das suas próprias idiossincrasias histórias, sociais e culturais. Uma pérola a que nem todos terão dado a importância que lhe deveria ser devida. Aquela guitarra desengonçada a meio do tema é soberba! O mesmo dizemos da crua “Chocolate Jesus”, que se fosse uma mistura de religiosidade e cacau, seria negra como o fundo de um poço onde se tivessem afogado dezenas de demiurgos loucos. “Pony” é outra em que sabe bem galopar serenamente, apontando o olhar à mesma América que há pouco referimos.
Se é verdade que os quatro momentos referidos no anterior parágrafo não são os mais conhecidos do álbum, quando mencionamos temas como “Hold On” (um hino que deveria ser ensinado nas escolas), “House Where Nobody Lives” (outro momento de sonora religiosidade!) ou ainda “Picture In a Frame” (aquele piano vale todo o ouro do mundo), tudo à nossa volta se dispersa e perde importância, entrando-se por caminhos que irão dar forçosamente ao Paraíso, que parece poder ser encontrado ao virar da próxima esquina. São momentos de uma beleza quase inusitada, dignos de pertencerem ao mais luminoso e incontestado Olimpo humano. No entanto, no dorso da mula ainda sobram temas como “Big In Japan”, “Lowside of The Road”, “Get Behind The Mule” ou “Come On Up To The House”, por exemplo.
Apetece sempre voltar a Mule Variations. Nas viagens que nela fazemos há mais de vinte anos, as variações são, ao mesmo tempo, inquietantes e delicadas, perfeitas e sempre capazes da bênção divina que é proporcionar-nos sempre boas e agradáveis surpresas, mesmo que conheçamos o trajeto proposto de olhos fechados. Abençoado Tom Waits!