A entrada nos anos 80 foi lixada para os songwriters. Dylan, Cohen, Bowie e até Young, todos se estatelaram ao comprido. Waits foi o único dos grandes a manter-se de pé. Nem um único sintetizador manhoso. Nem uma única concessão ao espírito de nylon do tempo. Muito pelo contrário. Tom começou então a fazer discos a sério.
Não me interpretem mal. Os seus álbuns dos anos 70 são puro vintage e muitas das suas melhores canções de lá provêm. O autor de “Ol’ 55” não sabe fazer maus discos. Simplesmente, começava a surgir um problema: Waits estava a repetir-se. Disco após disco ouvíamos as mesmas baladas jazzy ao piano, as mesmas cordas por detrás para adoçar a sua voz de whisky e cigarros, o mesmo divagar do contrabaixo pelas ruelas mal frequentadas de Los Angeles. Não havia dúvidas: Waits tinha todos os sintomas de quem sofria de excesso de identidade. Uma espécie de prisão. Tom não se permitia ser outra coisa que não a personagem beatnick fora de tempo que criara para si.
Para piorar a situação, apareceu na altura um irrecusável convite de Coppola para escrever One From the Heart (1982), um disco que o empurrou de novo para o lado clássico de que tentara, em vão, se distanciar com Blue Valentine (1978) e Heartattack and Vine (1980). Mas era preciso afinal recuar um passo para avançar dois. Foi durante a rodagem de One From the Heart que se apaixonou pela argumentista Kathleen Brennan, a grande catalisadora da profunda metamorfose artística que surgiu a partir de Swordfishtrombones. Isto é porém dizer muito pouco. Kathleen salvou-lhe a vida.
As circunstâncias em que este disco heterodoxo e pioneiro nasceu obrigam-nos a repensar alguns dos nossos lugares comuns sobre o rock and roll. Sempre nos venderam a ideia de que quanto mais auto-destrutiva e desviante for a vida de um artista mais criativo ele será. Juramos a pés juntos que se Jim Morrison tivesse tido um trabalho das nove às cinco como agente de seguros, indo à praia com a famelga aos fins-de-semana e bebendo leite magro de manhã em vez de meia garrafa de gin, não teria escrito nem uma única canção decente. Mas Waits troca-nos mais uma vez as voltas. Os seus discos mais arrojados foram feitos por uma fera amansada, enquanto os mais conservadores nasceram das ressacas de um homem pendurado no fio da navalha, um tipo que dormia em carros e em motéis, sempre afogado em cocaína e whiskey barato. No momento certo o anjo Kathleen apareceu, amparando a sua queda, resgatando-o do decadente Tropicana Motel, lavando as suas feridas. Anjo ou o diabo? É que há qualquer coisa de faustiano neste pacto entre Waits e Brennan: “Eu dou-te o dom da irreverência artística, em troca tens que me entregar a tua alma boémia”. Anjo, apesar de tudo. É o próprio Tom que nos dá a solução em “Heartattack and Vine”. Não existe diabo. É apenas Deus quando está bêbado.
A ambiguidade do estatuto teológico de Kathleen tem uma razão de ser: ela foi um anjo tão generoso como implacável. Tinha a perfeita consciência de que para salvar Tom era necessário empreender um corte absoluto com o seu mundo anterior. Afastou-o de Herb Cohen, o manager trafulha que durante anos lhe roubara os seus proveitos de direitos de autor. Afastou-o do produtor Bones Howe, um homem bom e competente mas demasiado conservador para ter lugar na refundação estética de Waits. Afastou-o da Asylum Records, uma editora mercenária e amblíope que sempre deixou Waits abandonado à sua sorte. Começou a afastá-lo do alcoolismo, demónio que só foi plenamente domado doze anos mais tarde. Em troca, Kathleen deu-lhe o seu amor, três filhos e uma crença incondicional na sua capacidade de se reinventar artisticamente. Um excelente negócio para a história da Pop.
Validado por Kathleen, Waits ganhou a confiança necessária para produzir ele próprio Swordfishtrombones. Saiu pela primeira vez da sua zona de segurança e obrigou-nos a sair da nossa. Os instrumentos de cordas foram despejados no lixo, o saxofone deitado pela janela fora, o piano encostado a um canto: instrumentos esquisitos como marimbas e harmónicas de vidro serviam melhor a sua nova visão estilística. Mesmo os instrumentos convencionais como a guitarra eléctrica eram agora tocados de uma forma não ortodoxa. A música era agora mais rítmica e visceral, como se Tom tentasse captar o tumulto da vida interior das suas próprias personagens subterrâneas.
Oscar Wilde dizia que o segredo da criatividade estava em esconder muito bem as fontes. Waits fez bem o seu trabalho de casa: Swordfishtrombones soa sobretudo a ele próprio. Só escavando muito conseguimos desenterrar as suas influências avant-garde: os blues selvagens e minimais de “16 shells from a thirty-ought six”, “Down, down, down” e “Gin soaked boy” lembram Captain Beefheart; a trôpega “Underground” tem não só uma progressão de acordes típica de Kurt Weill como a sua grotesca teatralidade; as percussões estranhas “recolhidas no ferro-velho” e o chiar de uma cadeira a arrastar em “Shore Leave” sabem ao vanguardista Harry Partch.
Não se pense porém que Waits rejeita por completo o seu lado mais clássico. A melodia continua a ter o seu lugar em Swordfishtrombones. “Johnsburg, Illinois” e “Soldier’s things” são bonitas baladas que não destoariam em Blue Valentine. O Waits pós-Asylum é assim: abraça com a mesma intensidade a dissonância e a melodia, a doçura e o ruído, a canção e o experimentalismo. O novo Tom Waits é complexo e contraditório. Como a vida.
Da mesma forma, há uma continuidade poética com os discos anteriores. Swordfishtrombones está povoado com as mesmas personagens marginais e desadaptadas, os mesmos sonhos traídos. “Shore leave”, narrada por um marinheiro desembarcado em Hong Kong, é a canção mais bonita que conheço sobre a saudade: “and I wondered now how the same moon outsider over this Chinatown fair could look down on Illinois and find you there”. “Town with no cheer” conta a história de uma cidade esquecida pelo mundo, onde nem sequer há o raio de um tasco onde se possa afogar as mágoas. Na comovente “Soldier’s things”, uma mãe vende os pertences do seu filho morto na guerra. “Frank’s wild years” fala-nos de um pai de família que pega fogo à própria casa, arrancando estrada fora: parábola sobre o desmembramento da sua própria família quando Tom tinha 10 anos.
Como seria de esperar, o disco foi um flop comercial nos Estados Unidos e um sucesso na velha Europa, sempre mais sofisticada nos seus gostos musicais. Para os aficionados, o álbum foi porém muito mais do que uma obra-prima: tornou-se um ícone de integridade, a marca de um artista incorruptível que nunca fez concessões a nada nem a ninguém.
Rain Dogs sempre foi muito invejoso do estatuto do disco que o precedeu. Achava-se superior, reivindicando da história do rock um maior reconhecimento. Azarão, Rain Dogs: “Swordfish” foi o primeiro. É ele que ergueremos sempre como bandeira.