Rain Dogs é um Swordfishtrombones em esteróides, demente e circense como o seu antecessor mas mais agitado e nova-iorquino.
A revolução acontecera no disco anterior, Swordfishtrombones (1983), quando Waits, assumindo as rédeas da produção, substitui o jazz de hotel de outrora por uma linguagem mais excêntrica e teatral (Captain Beefheart e Kurt Weill à porrada num cabaret berlinense). Rain Dogs, de ’85, segue-lhe na peugada mas como foi escrito e gravado em Manhattan é mais rítmico e propulsivo, espelhando o frenesim nova-iorquino. O disco é mesmo vagamente conceptual, uma ode aos que vivem na margem de Nova-Iorque – bêbados, putas, meliantes -, unidos pelos mesmos sonhos traídos. São eles os tais cães da chuva, abrigados, por breves instantes, debaixo do toldo das canções de Waits. No fundo, essa empatia pelos underdogs sempre foi o seu grande tema, mesmo nos seus discos mais convencionais dos anos 70; simplesmente, tudo agora é embrulhado numa encenação musical mais exótica, quase grotesca, com marimbas desafinadas e órgãos manhosos encontrados no sótão. As letras vão pelo mesmo caminho, mais livres e surreais, brincando com os sons, mandando a narrativa para o diabo.
Nova-Iorque oferece outra dádiva a Rain Dogs: a guitarra de Marc Ribot. O seu fraseado desengonçado – Thelonious Monk sem o piano – evoca com engenho os passos trôpegos de whisky das personagens de Waits. Que delícia é saborear a sua sensibilidade anti-rock, sempre preferindo a contenção à exuberância, o staccato à fluidez, a subtileza jazzística aos power chords. Invejoso, John Luria – comparsa de Ribot nos Lounge Lizards – também quis aparecer. Lá lhe deram umas deixas de saxofone em “Walking Spanish”, um dos temas mais imediatamente apetecíveis do disco, com groove e bazófia para dar e vender.
A presença de Marc Ribot bastaria para Rain Dogs ser um grande disco de guitarras mas Waits é guloso, não descansando enquanto o seu ídolo Keith Richards não desse também uma perninha. O blues de Howlin’ Wolf, o rock’n’roll de Chuck Berry e o country rock de Alan Parsons são filtrados pela assinatura inconfundível do mestre Keith, suja e espessa como uma mão cheia de terra.
O desenvolvimento artístico de Tom Waits tem uma coisa curiosa: nunca deita o passado fora. Se o tom dominante é bizarro e dramatúrgico, quase carnavalesco – Brecht a dançar nu num ferro-velho -, há excepções inesperadamente ortodoxas, como a balada folkie “Time” (à Closing Time) e a orelhuda “Hang Down Your Head”, escrita a meias com a sua mulher, Kathleen Brennan. “Downtown Train” ainda é mais descaradamente pop, apesar da sua voz de gravilha e ferrugem, e do negrume escondido na letra: um doentio stalker perseguindo o seu “amor” para todo o lado.
Há quem acuse Rain Dogs de se espraiar em demasiadas direcções, perdendo em sentido de coesão. Não damos para esse peditório. A ambiência nova-iorquina é a linha que une todas as canções no mesmo itinerário. Seria entediante que todos os apeadeiros fossem iguais.
Por tudo o que foi dito, mais o muito que ficou por dizer, Rain Dogs é um dos discos mais bonitos de Tom Waits. 19 canções, 19 retratos pungentes dos que ficaram de fora. A última vinheta do álbum, triste e compassiva como um anjo à janela, não nos deixa mentir: “onde eu puder encostar a cabeça é onde eu faço a minha casa”…