Geraes vem na sequência de Minas. Estão ligados umbilicalmente, embora não sejam gémeos. Ou, se entenderem que são, serão falsos, se bem que conservem alguns traços de união. É, no fundo, mais um disco histórico de Milton Nascimento. Geraes abriu caminhos novos e consolidou ainda mais a figura incomparável do mestre Bituca.
Pela metade da década dos anos 70 do século passado, Milton Nascimento era uma das figuras de proa da música popular brasileira mais cerebral, sem nunca deixar de ser (como já havia sido antes) artista de um certo culto marginal. Era ainda, é bom entender o tempo em que foi feita a gravação do álbum, um dos artistas mais severamente castigados pela censura dos Anos de Chumbo brasileiros, que embora do ponto de vista histórico estivessem já ultrapassados (o fim do governo de Médici data de 1974), ainda se fizeram notar, por quase mais uma década, o peso e a angústia da opressão militar. Mesmo assim, e sobretudo depois do sucesso de Milton (1975), o músico carioca (tão falsamente carioca, é um facto, que até parece difícil acreditar ter vindo à luz no Rio de Janeiro) tornou-se um sucesso de vendas, e os seus espetáculos esgotavam, mesmo nos maiores espaços onde viesse a atuar. Milton estava no ápice da sua carreira e assim se manteve durante larguíssimo tempo. Geraes é apenas mais um álbum histórico, dos muitos que Bituca lançou nos mais de 50 anos de composição, voz, discos e estrada.
Assim sendo, o que tem Geraes de especial e de diferenciador, quando posto lado a lado com o irmão Minas? Algumas coisas, de facto, sendo que a mais importante, pensamos nós, poderá ser a ideia de produção coletiva, conceito que já vinha de trás, e que foi muito bem sucedido com o disco mais do que histórico e decisivo Clube da Esquina (1972), trabalho inovador feito de riquíssimas parcerias, que envolveram Milton, Lô Borges, Toninho Horta, Wagner Tiso, Beto e Márcio Guedes, entre tantos outros. Em Geraes, outra grande diferença se opera, a de abrir terreno à participação de outros, que aqui é levada ao extremo, se assim quisermos dizer, uma vez que são apenas três as composições surgidas do punho de Milton Nascimento. Ao todo, as composições presentes no álbum são doze, assim se percebendo melhor o que dizemos. As participações especiais são boas e em boa quantidade. Ora vejamos: Chico Buarque, Mercedes Sosa, Clementina de Jesus, bem como do grupo Água, conjunto chileno dos Andes de fino recorte. A comandar tudo e todos, o génio de Milton Nascimento!
Se as diferenças estão marcadas, entre os dois discos há também, e de forma muito óbvia, laços que se mantiveram estreitos. O acorde com que termina a canção “Simples”, a que encerra o disco Minas, é exatamente o mesmo da abertura do tema “Fazenda” que inaugura Geraes. “Fazenda” é de uma beleza extraordinária, leve, solta, jazzística, como só Bituca sabe fazer. Como outras, aliás. Ouça-se “Calix Bento”, ouça-se “Volver a Los 17”, autêntico hino humanista que canta a força do sentimento como guia orientador, que deverá prevalecer sobre a razão. As vozes de Milton e de Mercedes Sosa atingem aqui um nível de harmonia e beleza comoventes. Mas as pérolas não ficam pelos momentos referidos. Temos ainda, vejam só, “O Que Será (À Flor da Pele)”, do também carioca Chico Buarque, que empresta a sua voz à gravação do conhecido tema da banda sonora do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, inspirado no icónico livro do baiano Jorge Amado. O tema, talvez nem todos saibam, tem três versões, todas presentes na referida longa metragem: “Abertura”, “O Que Será (À Flor da Terra)” e a que se encontra em Geraes, “O Que Será (À Flor da Pele”). “Promessas do Sol”, “A Lua Girou”, “Circo Marimbondo” (com a enorme Clementina de Jesus) e “Minas Geraes” são outros momentos maiores do álbum.
Vale a pena passar um bom pedaço de tempo ouvindo Minas e Geraes de seguida, mais que não seja por serem álbuns que nos limpam o palato auditivo como poucos. Não sendo um disco fácil (nenhum dos dois é, de facto), o prazer supremo que dele se tira torna-o, por assim dizer, obrigatório. Ainda hoje, ainda sempre.