Sem que ninguém estivesse à espera, o ano de 2002 trouxe-nos um par de álbuns de Tom Waits. Um deles, uma obra-prima que há algum tempo circulava nas mãos de alguns como simples demos. Chama-se Alice e é um variado país de maravilhas sonoras.
“It’s dreamy wheater”, canta Tom Waits na abertura de Alice. O verso, para quem não conheça o álbum e o ouça pela primeira vez, talvez não se adivinhe profético, mas na realidade é exatamente esse o seu desígnio, sem qualquer ponta de dúvida. Todo o disco passeia por nós em forma de um profundo sonho, mesmo que num ou noutro momento nos possa fazer estremecer ligeiramente. São apenas arrepios oníricos que fazem parte do processo de quem descansa o corpo na esperança de tranquilizar a alma. Sabem bem e lembram aqueles balanços de viagens em carris que mais convidam ao prolongamento do embalo do que a qualquer outra coisa menos reconfortante. Sossegam e empurram-nos ainda mais para as instâncias quiméricas onde queremos permanecer. Alice é tudo isto e Alice traz consigo a beleza angulosa que nos apazigua e se mostra reticente em fazê-lo ao mesmo tempo. É um dos mais deleitosos paradoxos sonoros que Tom Waits, esse enorme chapeleiro louco, foi capaz de produzir até hoje.
Alice é um álbum feito de canções com um destino muito particular, a peça de teatro com o mesmo nome levada a cabo por Robert Wilson, dramaturgo com quem Waits já havia trabalhado em The Black Rider, que também acabou por ganhar forma de disco, como sabemos.
No entanto, e bem mais interessante para o ouvinte do que saber os meandros da sua feitura, Alice é um trabalho que alberga um excelente conjunto de canções. É sobretudo por isso que o nosso apreço por este disco é tão grande. Desde logo pelo mágico tema de abertura (“Alice”), um dos mais brilhantes clássicos de Tom Waits. Mas também, e ainda, porque nas suas quinze faixas encontramos pérolas como “Flower’s Grave”, “No One Knows I’m Gone”, “Poor Edward”, “Lost In The Harbour”, “I’m Still Here”, “Fish & Bird” e “Barcarolle”, todas elas unidas por um especial sentimento baladeiro que só Tom Waits sabe ter, dolente, frágil, doce e negro ao mesmo tempo. Por outro lado, a circense vertente desvairada que nele igualmente gostamos muito, também se faz notar em Alice, embora de forma menos vibrante e saliente do que noutros seus famosos registos. Mesmo assim, em temas como “Everything You Can Think” (com aquela deliciosa corneta toureira algo distante), “Kommienezuspadt” (que cheira a cabaret berlinense que tresanda), “We’re All Mad Here” e “Reeperbahn”, os conhecidos créditos de compositor alucinado de Tom Waits não deixam de se notar, e bem. São todos magníficos, estes temas, tanto os mais suaves como os mais encrespados. Essa tão característica dicotomia sonora do músico norte americano, como bem sabemos, é uma das suas marcas registadas há já algumas décadas, embora não desde o início da sua carreira discográfica. Há ainda dois outros temas merecedores de destaque neste breve apanhado crítico: o armstronguiano “Table Top Joe” e o narrativo “Watch Her Dissappear”, faltando apenas a referência à faixa final, o instrumental “Fawn”, tímido mas elegante fecho de contas. Parece uma alma que chora e se derrama perante nós, aquele violino.
Alice é, como dizíamos no início deste texto, uma obra-prima de bom gosto, mesmo que essa expressão valorativa possa não ser entendida por todos os ouvintes de igual maneira. Gostar verdadeiramente de Tom Waits, como é o caso, não será nunca algo consensual. Mas isso, na verdade, pouco ou nada importa. Alice é um enorme triunfo, e ouvir o que ainda tem hoje para nos dizer, passados um pouco mais de vinte anos do seu lançamento, é e será sempre um destino obrigatório e recorrente para quem encontra em Waits um ombro seguro onde nos possamos apoiar. Porque Waits, acima de qualquer outra coisa, é um bruxo sombrio, mas bom. Um bruxo muito estimado e muito cá de casa. Um bruxo que só assusta os incautos que se movem por caminhos sonoros onde a maravilha e o encantamento são lugares plásticos, descartáveis e precários. Em Tom Waits pulsa uma outra coisa, e “essa coisa é que é linda”!