Quais os melhores discos dos anos 90? Illmatic? Dummy? Ok Computer? The Low End Theory? Nevermind? Na maior parte das situações em que estas conversas existem são lembrados apenas discos de bandas que representam qualquer tipo de novidade. É raro aquele que se lembra que o “velhinho” José Mário Branco fez um dos melhores discos dos anos 2000 ou que David Berman foi responsável por um dos discos seminais da década passada. O mesmo se passa com Bone Machine, uma obra-prima de Waits que é menos reverenciado do que merece por ter surgido “na década errada”.
O músico de Swordfishtrombones atirou-se a Bone Machine irritado com a vida – o normal, portanto – e ficou entusiasmado por gravar num estúdio de cimento pequeno e com uma caldeira. Neste ambiente semi-hostil gravou canções ao mesmo tempo claustrofóbicas e de uma beleza indelével, como é seu apanágio. O som deste disco – o melhor lançado por Waits na década de 90 – deve tanto ao blues como à música industrial. Quem o ouvir poderá encontrar quase tantos elementos de Nine Inch Nails como de Captain Beefheart ou Howlin’ Wolf, sem nunca deixar de identificar o vagabundo de The Heart of Saturday Night.
Durante a promoção do disco Waits confessou que se sentia irritado e amargurado e que esses sentimentos o levaram para trás da bateria – toca este instrumentos em três canções de Bone Machine – e de vários instrumentos de percussão que marcam grande parte da sonoridade impressa neste disco. “Gosto de tocar bateria quando estou irritado. Em casa tenho um instrumento de metal chamado conundrum, com muitas coisas penduradas que encontrei – coisas de metal – e gosto de o tocar com um martelo.” Três anos depois, Scott Walker lançava Tilt. (Coincidência? Talvez, mas serve esta ligação para referir outro portento lançado por um colosso antigo na década de 90 e tantas vezes esquecido.)
O melhor postal de apresentação de Bone Machine é mesmo o invólucro em que foi editado. Um demónio de metal surge na capa, enquanto os títulos das canções no verso descrevem perfeitamente aquilo a que soam os temas. “Earth Died Screaming” é uma história de amor durante o apocalipse, “All Stripped Down” é uma canção sensual e ao mesmo tempo masoquista, “Jesus Gonna Be Here” é um gospel-blues despido à la Son House e “In The Colosseum” põe Waits na pele de um imperador embriagado e entretido pela carnificina que testemunha (e incentiva). Há também espaço para o Waits baladeiro dos primeiros discos na belíssima “A Little Rain”, enquanto “The Ocean Doesn’t Want Me” é a versão de “Frank’s Wild Years” gravada no fundo do mar. E isto, acreditem, é um enorme elogio.
O disco é talvez um dos mais bipolares do músico, não sendo só extravagante, nem só classicamente waitsiano. Por exemplo, “Earth Died Screaming” tem a estrutura de um blues comum e isto seria o suficiente para os primeiros quatro álbuns de Waits. Mas, em 1992, não era a norma que lhe interessava e decidiu introduzir camadas atrás de camadas para esconder a simplicidade. Lendo os créditos do disco descobrimos qual o segredo desta orquestração tão excêntrica: paus. Pelo menos três pessoas são creditadas com tocar “sticks” nesta faixa, além de ter também Les Claypool, dos Primus, no baixo. A voz soa àquilo que soaria um bêbedo enfrentado pelo fim dos tempos: ora arrastada, ora histérica, ora tenebrosa. Ora sozinha, ora com coro. Um arranque auspicioso.
O pico do álbum é atingido à segunda canção (o que, confessamos, prejudica o disco). “Dirt on the Ground” é um dos melhores temas da carreira de Waits. É uma balada construída a partir de acordes no piano, complementada por saxofones e um clarinete, cortesia do magnífico Ralph Carney. Nela, Waits arrasta a sua voz em falsete por estrofes obscuras:
What does it matter, a dream of love
Or a dream of lies
We’re all gonna be the same place
When we die
Your spirit don’t leave knowing
Your face or your name
And the wind through your bones
Is all that remains
E este é o tema central deste álbum de Waits: a mortalidade. Cinco anos antes de Bob Dylan lançar “Not Dark Yet”, a canção que devolveu o tema da morte às suas composições, já Waits, oito anos mais novo, se atirava de cabeça à temática (não esquecer que aos 24 anos Waits já escrevia sobre como era sentir-se aos 56). Mas ao contrário do que fez Dylan (ou Reed ou qualquer outro dos vinte músicos que entravam na segunda metade da sua vida na década de 90), Waits não se dedicou exclusivamente à sua mortalidade. Optou por contar a história de várias personagens confrontadas com a morte. Por vezes dá voz a quem está a deixar esta vida (“Whistle Down the Wind”), outras aos que vêem os entes queridos partirem (na magnífica “Who Are You”).
Bone Machine é um dos melhores álbuns de Waits, apesar de ser muitas vezes esquecido. Ombreia com Swordfishtrombones, Small Change ou Rain Dogs e este é um ensinamento a transmitir a todas as gerações que se seguirem.