O Maxi single de José Mário Branco, FMI, é um disco muito especial: sincero, vulnerável e profundamente humano.
Há três grandes filhos do Zeca: Fausto, Sérgio Godinho e José Mário Branco. São os três enormes escritores de canções, é impossível hierarquizá-los. Mas o Zé Mário tem um trunfo que os outros não têm: é o autor do FMI, que pela sua catarse e nudez emocional é uma obra totalmente ímpar. Imaginemos que José Mário não tinha feito nenhum dos seus belíssimos álbuns de estúdio (a sós e em colectivo), e que não tinha revolucionado a direcção musical da música portuguesa com pérolas como o Cantigas do Maio, do Zeca. Suponhamos, por momentos, que a única coisa que nos tinha dado era o dilacerante FMI. Ainda assim, Zé Mário seria imenso.
O FMI foi gravado ao vivo a 1 de Maio de 1981, no Teatro Aberto, no âmbito do espectáculo Ser Solidário. O álbum-duplo com o mesmo nome seria publicado em 1982. O projecto é antigo, em Março de 1979 já havia sido gravada uma maqueta, que também incluía o FMI, cujo texto fora “escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79”. Acontece que a maqueta circulou pelo mercado discográfico sem que nenhuma editora aceitasse publicá-lo.
Seria por falta de qualidade? Canções incríveis como “Inquietação” respondem logo que não. Seria por falta de apelo comercial? A marcha orelhuda “Qual é a Tua, ó Meu” desmente a segunda hipótese com igual veemência. A razão é bem mais sinistra, de ordem política. Com a normalização democrática, que começa no 25 de Novembro de 1975, e que se consolida nos anos seguintes, os chamados cantores de intervenção tornam-se malditos, uma incómoda areia na nova engrenagem. Cantautores acarinhados no pós-25 de Abril, como o Zeca e o Zé Mário, deixam de ser bem-vindos no novo estado das coisas, afastados da televisão e da rádio. É neste caldo de desilusão pelos sonhos traídos, e de mágoa pelo silenciamento da sua voz artística, que é escrito a sangue o FMI.

Alguns acontecimentos biográficos tornam, talvez, a ferida mais profunda: o divórcio em 1977; desentendimentos com a própria esquerda maoísta de onde provinha; a cisão do grupo de teatro A Comuna, em Janeiro de 1979. Difíceis digestões emocionais em diversas esferas da sua vida: na família, na política, no teatro.
Zé Mário não verga, porém, co-fundando o Teatro do Mundo, que produzirá o espectáculo Ser Solidário, estreado a 21 de Novembro de 1980. E se nenhuma major tem a coragem de publicar o projecto, não faz mal: cria-se um sistema de pré-compra do disco, para financiar a sua produção pela Edisom. O sucesso de bilheteira do espectáculo ajuda à festa. E parte desse sucesso decorre do burburinho à volta do “FMI”, interpretado no final dos espectáculos como encore, precioso segredo sussurrado de boca em boca.
Apesar de ser parte integrante do projecto Ser Solidário desde a sua concepção, o FMI é editado à parte em Maxi single, o que é revelador do seu carácter singular. É o próprio produtor do disco, Trindade Santos, que advoga esta separação, de forma a proteger o apelo artístico de todo o conjunto. Lembremos que em 1982 Portugal estava ainda muito polarizado politicamente, com os ânimos exaltados à esquerda e à direita, pelo que seria fácil a obra do Zé Mário “levar por tabela”, revela Trindade Santos no documentário “Mudar de Vida”.
O FMI é idiossincrático a outros níveis: muito mais do que apenas música – teatro!, poesia!, crua intimidade! -, é difícil encontrar outro objecto artístico onde o seu criador se exponha tanto emocionalmente (valente a sua verdade, rija a sua vulnerabilidade).
Escalpelizemos então o FMI com o nosso tosco bisturi.
Tudo começa com uma canção leve e sarcástica, muito spoken word, um olhar irónico sobre o admirável mundo novo da “produtividade, ora aí está”…

Depois, sem estarmos à espera, a canção arrumada começa a descarrilar, resvalando para formas mais desbragadas, mais dramatúrgicas, mais corrosivas. É a fase “Escuta Zé Ninguém meets A Cena do Ódio”, onde a nossa cobardia disfarçada de bazófia – “tu sozinho consegues enrabar as nações unidas!” -, e a nossa mesquinhez cúmplice do salve-se quem puder, são trucidadas pelo seu sentido de observação arguto e o seu humor cáustico. Há outra crítica: ao novo Portugal modernaço e estrangeirado – “afinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio” -, o consumo de entretenimento entorpecendo as consciências, e a dominação da cultura anglo-saxónica – “dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco sound” – varrendo a música popular portuguesa do espaço mediático.
Segue-se nova mudança de tom – agora, mais sofrido e raivoso – e de interlocutor – os seus próprios camaradas engajados à esquerda, uma reacção ao moralismo sectário do seu próprio quadrante ideológico: “mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!”.
Neste diálogo imaginário emerge o tema porventura principal do FMI: a busca dificílima da felicidade: “quero ser feliz, porra! / quero ser feliz, agora! / que se foda o futuro!”. É esse lado existencial, extravasando o seu próprio contexto político e histórico, que explica o seu apelo universal, mexendo também com as gerações nascidas no pós-25 de Abril.
O que de nenhuma forma subtrai, é claro!, o carácter profundamente geracional do FMI. Os sonhos e desilusões que Zé Mário viveu foram partilhados por toda uma geração à esquerda. A catarse do FMI não é individual, é colectiva, palco e plateia unidos no mesmo luto, tentando fechar em conjunto um difícil ciclo. Por isso, todos se comovem, todos choram, todos tentam começar de novo…

O crescendo emocional atinge um clímax quando Zé Mário grita e chora pela sua mãe. É o auge do sofrimento e da fragilidade, como se fosse de novo uma criança indefesa, e precisasse desesperadamente do amparo materno. Depois desse grito primal – “ó mãe!, ó mãe!, ó mãe!” -, a música para e assoma um silêncio espesso e desconfortável. Começa então um monólogo pausado e sussurrante – “eu quero morrer, mãe” – onde a intensidade emocional já não decorre do grito e da pressa, mas do seu contrário: do murmúrio e da lentidão.
É neste estado de absoluta vulnerabilidade que se vai aos poucos recompondo. Um caminho – vagaroso e gradual – do desespero à nova esperança. Agridoce, é certo, mas reanimado pela vontade irreprimível de se levantar do chão. Enquanto recorda com ternura gestos de fraternidade que aconteceram no PREC, fazendo um balanço positivo da dolorosa travessia, e renovando a sua disponibilidade solidária para com o outro – “contai com isto de mim para cantar e para o resto” -, ouve-se, ao fundo, uma flauta tocando uma bonita melodia. Sim, é “Ser Solidário” que vem aí, e o seu derradeiro verso resume, porventura, a demanda do FMI: “e, improvavelmente, ser feliz”…
FMI é um trabalho extraordinário!!!