A estreia de Vitorino em disco, uma voz única do Alentejo que se distingue do caldo da intervenção onde estava mergulhado.
Vitorino tem sido, ao longo das últimas décadas, a voz do Alentejo no panorama musical nacional. É, aliás, curioso, como é impossível falar de Vitorino Salomé sem falar dessa região, tão marcada que está na sua música e no seu inconfundível e orgulhoso sotaque.
Um de cinco irmãos, nasceu no Redondo, numa família e numa casa cheia de música. Desse primeiros tempos vem a vida de escola, das tabernas, das cantorias, de um Alentejo marcado pela pobreza, pela desigualdade e pela atenção da PIDE, sempre suspeita de cantigas e de quem fala à mesa do café.
Vitorino é um artista de corpo inteiro, tendo uma grande paixão pela pintura, e desde cedo cultivava uma personagem peculiar, trajado de preto e de chapéu. Muito jovem, um encontro com grande significado: conhece Zeca Afonso no Algarve, quando fazia a recruta da tropa. Ficam amigos e nunca mais se largaram.
Aos 2o anos, Vitorino vem viver para Lisboa, cursando Belas Artes e mergulhando nas longas noites de copos, tertúlias e música. Depois disso, emigra para França, onde aterra na grande comunidade portuguesa de Paris, onde estreita relações com outros grandes vultos como José Mário Branco e Sérgio Godinho, com quem canta e toca.
Pouco antes do 25 de abril, em Março de 1974, é um dos músicos presentes no mítico concerto do I Encontro da Canção Portuguesa, desafio mal disfarçado à ditadura, que acabou com a multidão a entoar “Grândola, Vila Morena“.
Vitorino, que participou em muitos discos de camaradas de cantigas – com a sua inconfundível voz ou na concertina, por exemplo – chegou mais tarde às edições em nome próprio. Foi com este Semear a Salsa ao Reguinho, de 1975, que logo cimentou o seu nome entre os vultos mais idiossincráticos do movimento. Vultos estes que fizeram questão de estar consigo, com Zeca e Godinho, entre outros, a participarem das gravações.
Produzido por Fausto, é um disco que se distingue de imediato dos outros grandes trabalhos da canção de intervenção de então. Isto porque é, acima de tudo, uma extraordinária carta de amor ao Alentejo, aos seus sons e às suas gentes. Face a outros registos de então, este não é um disco abertamente político, e muito menos panfletário. Há uma grande presença de temas tradicionais alentejanos, que Vitorino faz para sempre “seus” e dando-os a conhecer ao resto do País. Das 13 canções, sete são tradicionais populares com recolha e arranjo de Vitorino. Um deles é aquele que ficou como a sua canção mais conhecida, – e até, segundo o próprio, quase como uma maldição – a célebre “Menina estás à janela”.
O próprio arranque do disco é Alentejo de corpo inteiro, com o poder do cante alentejano de “Se fores ao Alentejo”, que se confunde com a faixa-título, logo de seguida. Percebe-se imediatamente em que território estamos e somos recebidos.
O político está lá, como não podia deixar de estar naquela época e no caldo cultural de onde Vitorino vinha e onde se movia. Está em temas como “Oh patrão, dê-me um cigarro”, com voz inicial de Sérgio Godinho, em “Morra quem não tem amores” ou em “Cantiga de uma greve de verão”. Mas, diga-se, quem manda é a cantiga e a poesia, e as referências políticas são, muitas vezes, dadas num título ou num verso, para de seguida serem abandonadas. Comparando com os discos “revolucionários” de Fausto Bordalo Dias, por exemplo, o contraste é enorme.
O que é curioso é que Vitorino consegue, através da sua personagem individual – como em “Cantiga de um marginal do século XIX” – trazer sempre uma voz colectiva. De um povo, sim, mas sobretudo de um povo alentejano, do qual é grande embaixador, até aos dias de hoje. É, juntamente com o algo esquecido Francisco Naia, a voz de uma região.
Semear Salsa ao Reguinho é um disco muito bonito e idiossincrático, que urge redescobrir, como muitas outras coisas sempre interessantes que o seu autor foi fazendo ao longo dos anos. Foi reeditado, sim, mas está ausente de serviços de streaming como o Spotify e, mesmo no YouTube, é necessário algum trabalho de arqueologia para o encontrar na versão completa.
Corrija-se, por favor. E escute-se, sobretudo.