
Se a noite é uma criança, então a criança lisboeta de dia 28 estava mimada e ansiosa por crescer sob saudável tecto. E sim. A noite de Lisboa crescia sob o aparato do primeiro dia de Vodafone Mexefest.
Sinkane (Estação Vodafone FM): Ainda recém-nascida (mas já jantada dos primeiros concertos do festival) a noite foi subjugada pelos ritmos africanos dos sintetizadores Krautrock do médio oriente mas ocidentalizado pelo funk e pela alma jazzística de Sinkane. Passava pouco das 21h: horário bastante apropriado para a música que se ouvia da Estação Ferroviária do Rossio. A Estação ia-se compondo e, a curiosidade de muitos, levou à sua enchente. Muitos tinham um jantar por digerir e/ou uma noite por preparar, mas foi na alegria da nu-soul do baixo e da voz de «How We Be», claramente a mais conhecida do novo disco Mean Love, onde se ouviu mais elogios. «Epá… que surpresa» – diziam os múltiplos comentadores-espectadores enquanto as almas dançantes estavam mais focados no seu pézinho de baile. Também era fácil de detectar um desagrado em relação ao sistema de som que, para alguns, estava estranho.
tUnE-yArDs (Coliseu dos Recreios): O projecto de Merrill Garbus foi o primeiro, dos dois dias, a subir ao maior palco do Vodafone MexeFest, o Coliseu dos Recreios. Era uma sala cheia que a recebia e certamente ninguém se arrependeu. De armas em punho (leia-se baquetas) Merrill não descansou um segundo, naquilo que foi um disparar continuo de percussão bem cronometrada. Ao seu lado um teclado de onde tirava os loops sobre os quais muitas das suas músicas são fundadas preenchia o seu palanque central. À sua volta tinha uma percussionista a acompanhar todas as suas batidas, um baixista e teclista e atrás duas eléctricas dançarinas, que tanto cantavam como juntavam ainda mais percussão a toda esta algazarra ritmada. Foi um óptimo concerto! Merrill mostrou que continua sempre a ser possível inventar coisas novas misturando com antigas, como o utilizar um ukelele electrificado cujo som em nada parecia o habitual. E isto num registo por vezes soul do qual poucos esperariam. Não admira se estiver de regresso em breve.
Éme (Cinema São Jorge – Sala Montepio): Não me importo de elogiar. Apesar da música de Éme (a.k.a João Marcelo) já gatinhar desde 2011, o Último Siso (de 2014), segundo disco longa-duração da sua discografia, tem vindo a ganhar território e a roubar elogios. E os elogios foram justificados naquela já cheia sala do São Jorge, que roubou, sem pudor, audiência ao concerto de tUnE-yArDs no coliseu. Acompanhado por conhecidas caras (Júlia Reis das Pega Monstros, Lourenço Crespo dos Iguanas e Migual Abras das Putas Bêbedas), Éme foi senhor da sua stratocaster. Focou o seu reportório neste seu último disco, embora tenha ido a canções mais antigas que, de acordo com João Marcelo, estavam «mal ensaiadas». Mal ensaiadas ou não, soou bem. Melhor saberá B Fachada, que também assistia ao concerto. Aliás, é comum relacionar Éme ao B Fachada, especialmente porque faz parte da Cafetra Records e porque esteve envolvido na produção deste aclamado disco, mas ao vivo nota-se perfeitamente que Éme é Éme. A identidade das canções que, em disco, têm a marca da textura orgânica e do reverb de Fachada, mostram ao vivo uma personalidade tímida mas conversadora. Quem não conhecia bateu palmas e quem conhecia respondeu com um merecido rubro em forma de coro, ecoando canções como «Lisa». Terminou a solar e a cativar uma audiência jovem mas bastante comprometida com o cancioneiro de um trovador folk elétrico que promete crescer.
Pharoahe Monch (Ateneu Comercial de Lisboa): Bastou um DJ, um microfone e um ginásio velho com um campo de basketball para viajarmos até Queen da década de 90. «Are you there Lisbon? Is Hip Hop in the building tonight?!» berrava a lenda do Hip Hop enquanto nos preparava para um «Free». O MC rapidamente destruir qualquer réstia de vergonha do público que se ia compondo. A dança, os punhos no ar e os berros (a pedido de Phraohe) foram o mote para um espetáculo verdadeiramente old school. Acompanhado pelo magnífico scratch do DJ Boogie Brown, houve tempo para palmas sincronizadas em «Clap (One Day»), consciencialização da importância da paz nas ruas de St. Louis em «Sound of da Police» e samples em homenagem ao bom que se fez na East e West Coast; Biggie Smalls e Tupac. A clássica «Simon Says» foi um dos momentos da noite: sendo reconhecida e dançada por todos, inclusive pelos menos entendidos. Uma verdadeira lufada de ar fresco num cartaz que mereceu um capitão do Hip Hop como Troy Donald Jamerson (a.k.a Phraohe Monch). Quem descartou Kindness para ver Phraohe Monch não se arrependeu.
King Gizzard & The Lizard Wizard (Garagem Epal): A maior surpresa deste festival. Deste ano, diríamos! 7 rapazes australianos, com idades em torno dos 23 anos, magricelas, despreocupados, cheios de energia. Tocaram durante uma hora, sem pausa, assentes numa teia hipnótica à base de baixo e baterias. No plural, são duas, mas mais sincronizadas que atletas dos jogos olímpicos. Essa teia bateria e baixo, constante, consistente, serve quase de mantra, sobre o qual vão falando os outros instrumentos: guitarras, harmónica, flauta. Mas a teia está lá sempre, umas vezes mais estridente, outras mais sorrateira, mas nunca pára, nunca deixa de hipnotizar. As músicas vão oscilando entre passeios espaciais e descargas de energia rock desenfreado, a pedir moche e crowdsurf (que se concretizaram).
Quando cheguei ao concerto dos King Gizzard conhecia só uma música, mas tinha ouvido boas coisas deles. Depois deste concerto, percebi que são os descendentes directos dos Doors (aquela teia de bateria e baixo não é senão uma LA Woman de 50 minutos), e este foi dos melhores e mais intensos concertos a que assisti nos últimos tempos. O disco de estreia deles está prestes a ser editado na Europa, entretanto já estão a trabalhar noutro álbum. Resta esperar para comprovar que esta banda vai estar, em breve, a ocupar os palcos mais importantes de todo o Ocidente.
Após o concerto ter terminado a debandada foi geral para voltar ao Coliseu e ver St. Vincent mas quem não foi logo embora pode conviver um pouco com esta banda australiana. Saltaram do palco e tiraram fotos com quem quis e foram extremamente afáfeis. Ficámos um pouco à conversa com o baixista da banda que nos revelou preferirem tocar em garagens como esta da EPAL a tocarem em grandes festivais, apesar de necessários para a subsistência financeira. Mas revelou-nos que é bem provável que passem cá no verão para algum dos festivais de junho ou julho.
St. Vincent (Coliseu dos Recreios): O nome mais sonante da noite era então St. Vincent. O projecto de Annie Clark encheu novamente o Coliseu, e desta vez com os camarotes e galerias bem compostos também. Mas a expectativa não foi a mais correspondida. Cremos ser necessário para um artista criar uma certa cumplicidade com o público, mas se nem todos conseguem ser como Eddie Vedder (exímio em encantar qualquer um), outros pecam pelo exagero ou puro disparate. Annie Clark, apresentou uma actuação que para muitos pareceu demasiado fake. Estaria alucinando? Não nos parece. Era tudo demasiado mecânico para captivar a nossa simpatia. E musicalmente? Começou bastante bem com “Rattlesnake”, “Digital Witness” e “Cruel” e deixou “Birth in Reverse” já mais para o fim, single de enorme energia deste seu último álbum homónimo. Por fim terminou num belo registo com “Krokodil”, single lançado para o Record Store Day e “Your Lips Are Red” do seu álbum Marry Me. De uma forma resumida, o concerto valeu a pena mas preferimos a antiga St. Vincent, morena, melodiosa e consciente a esta nova St. Vincent, loira, robótica, esquizofrénica.
Texto: Francisco Pereira, Duarte Pinto Coelho e Alexandre R. Malhado
Fotos: Francisco Fidalgo