O tempo não dá tréguas e avança. Ao terceiro dia, os Metallica surgiam arrasadores como cabeças de cartaz, quase fazendo terra queimada de tudo o resto. Mesmo assim, um nome se destacou, mais do que qualquer outro dos restantes artistas: St. Vincent. E de que maneira!
Antigamente, tudo terminava ao terceiro dia. Agora, as coisas já não se passam apenas nesse intervalo de tempo. E assim, na penúltima etapa da jornada NOS Alive 2022, o terceiro encontro foi para passar o testemunho aos homens de barba rija, cabelos compridos e guitarras em forma e jeito de artilharia pesada. Em dia de Metallica, as tropas reunem-se e cerram os dentes. Era vê-los, pequenos exércitos de guerreiros do som e da paz, em deambulação por todo o recinto. Mais tarde, entrariam em ação. Era só aguardar pelo sinal de James Alan Hetfield.
E para além dos monstros norte-americanos, o que mais haveria para ver? Enfim, essa é sempre tarefa aprazível, momento de alguma descoberta e também altura de ir ao encontro de outras atuações esperadas com alguma ansiedade, nomes importantes do que se vai fazendo um pouco por todo o mundo, mas momento de presenciar regressos também, como aconteceu com os Três Tristes Tigres, vindos da década de 90 até 2022. Mas isso fica para daqui a mais algumas linhas. Voltemos ao início da conversa e ao início do dia, até porque começar do zero é sempre um bom ponto de partida. Vamos a isso, então.

Como tem sempre acontecido, o início dos dias Alive deste ano tem sido ao som das nossas palavras, da nossa língua, com artistas portugueses ou brasileiros. Ontem, não houve exceção a essa regra casual. Madalena Palmeirim, que já havia feito parte dos Nome Comum e Rainhas do Autoengano, apresentou-se no Palco Coreto, e só isso já diz alguma coisa sobre a atmosfera acolhedora do concerto e da sua atuação. A música de Madalena Palmeirim é simpática, bonita, sedutora, misto das coisas portuguesas, brasileiras e africanas. Cantou dois temas em crioulo, inclusivamente. Mas, na verdade, todo o seu ambiente sonoro faz tangente pelo samba, semba, morna, funaná e música popular portuguesa. Boa para mexer o pé e a anca. Foram tocados vários temas novos, entre os quais a elegante balada “Arte do Disfarce”. Foi um concerto bonito e intimista. Obrigado, Madalena Palmeirim. Foi um (sereno) prazer.

O som garage-blues-rock dos Royal Blood antecedeu os Metallica no Palco NOS Alive. Uma espécie de aquecimento para o que viria um pouco mais tarde. O duo inglês (Mike Kerr, baixista e vocalista e Ben Thatcher, baterista) tem presença forte em palco, e por vezes há coincidências engraçadas: os Metallica sempre demonstraram apreço pelos ingleses, assim como Dave Grohl, apenas para referir dois músicos que já lhes fizeram as devidas vénias. O concerto foi tipicamente stoner e os temas tocados foram pescados nos três álbuns da banda, embora os de Typhons, o trabalho de 2021, fossem os mais ouvidos, o que é natural como promoção das canções mais recentes. No entanto, “Little Monsters” e “Out of The Black” foram, seguramente, os mais apreciados. Foi um concerto honesto e vigoroso, credível, em linha com aquilo que se esperava da banda. No entanto, a sensação é que falta ali qualquer coisa. Será dos nossos ouvidos? Talvez, mas não temos outros. Rock on!

Apesar de em disco dar a sensação de que ainda não foi desta que surgiu um excelente trabalho, ao vivo a conversa é outra. Belo concerto, aquele que St. Vincent nos ofereceu ontem. Estilo, bela banda de apoio (oito pessoas em palco), groove de sobra, negro music by white people para ninguém achar defeito. Que maravilha! Ficámos rendidos. Movimentos ensaiados, tudo bem pensado para que o melhor de cada um viesse ao de cima. E quando a senhora pega na guitarra (Prince de calções?), a pinta é outra, é ainda maior. Alguns dos temas tocados parecem buscar um certo caos, mas há sempre um fio condutor que os salva da desordem e da perturbação estabelecidas. Outras vezes, igualmente apetecíveis, St. Vincent parece uma Lolita virginal e marota ao mesmo tempo, da qual todos temos sérias reservas e desconfianças. Brinca connosco, seduz-nos e sente-se feliz com isso. Nós também. Leu muitas das páginas mais ousadas do mestre russo, seguramente. Convém não esquecer que St. Vincent é uma nova iorquina oriunda dos meios artísticos mais clever clever, e isso é bem visível na sua performance. Não é por acaso que gravou um álbum inteiro com o cabeça falante David Byrne. A canção “New York” e o que fez com ela em palco não nos deixam dúvidas quanto à sua qualidade. Aquele foi um autêntico momento de perfeição! “I have lost a hero, I have lost a friend / But for you darling I’d do it all again”. Fuckin’ awesome! O final também com uma ótima sequência de temas como “Your Lips Are Red”, “Live In a Dream” e “The Melting of the Sun”. Foi perfeito, não foi?

Pouco passava das 11 da noite quando começou a missa negra, o momento mais aguardado deste terceiro dia de Alive. Que este era o dia de Metallica, que ditariam a lei contra tudo e contra todos, era evidente e sentia-se no ar. Quando James Hetfield, Lars Ulrich, Kirk Hammett e Joe Trujillo apareceram em palco, tudo estava conquistado, só faltava recolher o saque. O arranque foi, como habitualmente, fortíssimo, com a sequência “Whiplash”, “Creeping Death” e “Enter Sandman” a não deixar dúvidas a ninguém. Se as primeiras duas são clássicos que os fãs de mais longa data amam, a terceira assegurou aos apenas “simpatizantes” ou curiosos que também eram bem-vindos e seriam felizes ali. Num concerto de pouco mais de duas horas, o alinhamento até foi pouco óbvio. Não que não tivéssemos algumas das músicas obrigatórias e mais desejadas, mas a banda quis dar um cheirinho de praticamente todos os discos da sua carreira (já lá vão uns 41 anitos). Percebe-se a intenção mas na verdade a liturgia ganhou mais força em dois segmentos distintos: com os temas do álbum preto, ainda a tocar fundo nos fãs e nos ouvintes mais generalistas; e com as músicas dos quatro primeiros discos (que bom foi ouvir “One”, em Lisboa). A força dos Metallica está naquela mistura entre agressividade (os riffs sujos da guitarra ritmo de Hetfield continuam a lavrar tudo o que aparece à frente), melodia e sentimento de pertença, e isso houve de sobra, mesmo que com algumas imperfeições aqui e ali. Por falar em Hetfield, está cada vez melhor como frontman, a cantar no ponto e muito comunicativo, tanto com o público como com os seus irmãos de luta. Como explicou, estávamos perante a “Metallica Family”, e os que não pertenciam no início da noite seriam iniciados e passariam a ser. Com direito a fogo de artifício, fogo mesmo lançado bem alto em labaredas enormes, o concerto foi um exercício old school, conseguindo não parecer datado. Queremos chamas? Claro. Foguetes? Sim, por favor. Uma saída de palco e o regresso para o encore? Vamos a isso! Guitarras cortantes como machados? Como poderíamos recusar? O final foi seguro e apoteótico, com a sequência “Damage Inc”, “One” e “Master of Puppets”. Não foi o melhor concerto de Metallica em Portugal, mas saímos felizes e de papo cheio.
Com tamanha multidão junta, é demonstrativo da fidelidade do público aos Metallica o facto de pouquíssima gente ter arredado pé antes do fim, mesmo sabendo que, com isso, teriam de enfrentar a sádica gincana que é sair do Alive e tentar chegar a casa antes do dia seguinte. Tantos anos depois, não há um Vice-Almirante por aí que resolva o assunto?…
Enfim, siga a música.

O regresso dos Três Tristes Tigres foi marcado pelo arrastão Metallica. Pouco público, pois claro, que o imenso mar de gente estava do lado oposto do recinto. Vieram eles dos anos 90 para uma coisa assim… Mas falemos um pouco mais a sério: a banda de Ana Deus (ex-Ban, se bem se recordam) e de Alexandre Soares (ex tanta coisa, como GNR, por exemplo) merecia melhor sorte no posicionamento do cartaz do dia de ontem. São históricos da nossa música elétrica. Com um disco de regresso em 2020 (mais de duas décadas depois do álbum Comum), a banda do Porto desceu até Lisboa após uma enorme e prolongada ausência, e o concerto, no contexto do Alive, foi quase invisível. “Contra a batota, o rei vai nu”, como diz a canção. Mas nós, que por lá andámos, vimos um concerto honesto e agradável. “Morrer de amor é possível / mas eu nasci para viver”. Foi, como se percebeu, uma prova de vida, claro. Mas à frente do palco, quase tudo estava “morto”.

A menina atrevida e de sangue na guelra entrou de rompante a metralhar rimas e batidas como se fossem armas de arremesso. A mistura de hip hop, eletrónica e world music tem os seus fãs, e depois dos metaleiros terem terminado a sua atuação, M.I.A. (Mathangi Maya Arulpragasam, é esse o seu nome de batismo) fez o que tinha a fazer: incendiou a tenda Heineken com a sua música muito particular, dançou e fez dançar, protestou contra a “merda de mundo em que vivemos”. Parece que foi ontem que surgiu no estrelato musical, mas são já quase duas décadas de vida artística com algumas polémicas às costas, alguns discos em carteira e alguns sucessos, o percurso da autora de Arular, o álbum de estreia de 2005. “Born Free” e “BirdFlu” foram o arranque do grande e festivo encontro com o público português. Mas é claro que, um pouco mais tarde e no alinhamento do concerto, apareceram “Galang”, “Bamboo Banga”, “Bad Girls” e “Paper Planes”. Alguma loucura e caos na plateia acabaram por ser o balanço saudável da atuação de M.I.A. O público gostou, e pela expressão da indomável artista em palco, também ela deve ter ficado satisfeita.
E pronto, foi mais ou menos assim. Fechámos as contas e o dia com os proveitos referidos neste texto. Sobra apenas mais uma jornada, a última até à longa despedida que durará mais um ano, até que volte a chegar um novo mês de junho. Mas como tudo é cíclico, os anos e os dias, amanhã marcamos de novo encontro por aqui. Combinado?
Texto: Carlos Lopes com Tiago Freire || Fotografias: Inês Silva (excepto onde creditado)