O quarto tomo de Jorge Palma, o disco-duplo Acto Contínuo, transborda de criatividade. A morada de “Portugal, Portugal” e “A Gente Vai Continuar”, entre tantos outros clássicos…
O período mais prolífico e inspirado da obra de Jorge Palma foi a década de oitenta, encetada logo à bruta com o disco duplo Acto Contínuo, de ’82. Palma havia sido músico de rua em Paris, tocando em esplanadas e estações de metro, e quando regressa a Portugal, em ’81, traz consigo uma mala cheia de canções. Vinte e uma, para sermos mais exactos. Nem uma única erva daninha…
Palma ainda pensa em gravá-las ao vivo – num bar da Praia da Rocha – mas as dificuldades logísticas acabam por dissuadi-lo. À época, para muito no Hot Clube, arregimentando lá músicos de jazz experimentados (até o piano, quase uma extensão do seu próprio corpo, foi desta vez entregue ao teclista Manuel Paulo). Ensaiam tanto na casa de Palma que quando chegam ao estúdio já sabem tudo de cor, tudo gravado num ‘acto contínuo’.
A divisão do álbum não foi bem a régua e esquadro – nada o é com o nosso Palma – mas o primeiro disco tende a ser mais jazzístico e rítmico, e o segundo mais folkie e intimista, com os dedilhados da guitarra acústica de Jorge no centro (por vezes, só mesmo viola e voz).
Do primeiro disco, destacamos a propulsiva “Picado pelas Abelhas”, todo um tratado orwelliano sobre ‘o triunfo dos porcos’, mais tarde reinterpretado no Palma’s Gang ao Vivo no Johnny Guitar.
O segundo disco alberga uma mancheia de temas hoje canónicos.
“À Espera do Fim” é uma balada devastadora, de uma desconsolada resignação: nada pode salvar aquele amor moribundo. “Se ainda me queres vender, se ainda me queres negociar / isso já pouco me interessa” – desabafa Palma com uma verdade emocional na voz que arrepia.
“A Gente Vai Continuar” é bem mais esperançosa: “enquanto houver estrada para andar”, a malta segue em frente. Obrigado, Palma, pelo alento nos momentos mais difíceis…
“O Meu Amor Existe”, imortalizada em Só, como os dois temas anteriores, é uma bonita canção de amor, tão poética como delicada: é melhor ouvi-la com cuidado, não vá a sua frágil porcelana quebrar-se.
“Portugal, Portugal” é outra das indefectíveis, uma conversa imaginária com o nosso país, lamentando as nossas tendências sebastiânicas, que só nos paralisam: “ai Portugal, Portugal, enquanto ficares à espera, ninguém te pode ajudar”.
“Eu Fui um Lobo Malvado”, também repescado no Palma’s Gang ao Vivo no Johnny Guitar, dança com os esqueletos no armário, assumindo o nosso lado sombrio – quem não o tem?
Mesmo os temas menos conhecidos são incríveis. A balada “Eu Estou Bem” volta a um tema recorrente na sua obra, as conversas de confessionário com a sua mãe, que vêm de tão fundo que ficamos todos eriçados. Em “Cantinho”, a canção que encerra o disco, o ateu Palma anda tão desconsolado que pede ajuda ao próprio Cristo: “ajuda-me a ver em cada um um irmão, e não apenas mais um estrangeiro”. Os mesmos versos são cantados em português por Palma, e em inglês e francês por vozes femininas, tudo entrelaçado no final: três vozes, três melodias e três idiomas em uníssono, traduzindo para a linguagem da música a prece humanista das palavras. O fim perfeito de um disco perfeito.