O terceiro disco de Björk, Homogenic, é, talvez, a sua obra prima: islandês nas paisagens que pinta, extraterrestre na estranheza que entranha, humaníssimo no que em nós estremece.
Nos seus dois primeiros discos, Debut e Post, Björk, ardilosa, fingiu que não era marciana, diluindo as suas idiossincrasias estéticas com baldes de apelo pop e groove dançável. Teve então, naturalmente, o seu pico de popularidade, mas a sua condição de quase estrela pop foi paga com avultados amargos de boca. Quando um paparazzo em Banguecoque quis fotografar-lhe o filho Björk passou-se dos carretos e agrediu a CMTV lá do sítio. Outro incidente ainda foi mais perturbador: um fã tresloucado remeteu-lhe uma carta-bomba, suicidando-se “em directo” pouco depois. Björk defendeu-se da única forma sadia, afastando-se das luzes sombrias da ribalta. Itinerário: fugir da frenética Londres, refugiando-se no sul de Espanha.
O disco que gravou em Málaga, Homogenic, marca uma viragem estética, da pop para um maior experimentalismo, das eufóricas batidas dançantes para uma electrónica mais introspectiva, da vertigem de migrante no Reino Unido para uma homenagem à sua austera Islândia. Uma vez encetado este caminho mais artístico só havia uma direcção para Björk, o do crescente arrojo anti-pop. Homogenic fora o pontapé de saída desta nova Björk ostensivamente autoral, cada vez mais ela própria.
E para se ver com lucidez a pátria amada nada como estar longe dela – tudo é então mais vivo e saudoso. E como raio se traduz a bizarra Islândia em sons? Em primeiro lugar, recusando as batidas hiper-urbanas da cultura rave e substituindo-as por beats crus e rurais, vulcânicos e terrosos, com musgo e lava a borbulhar. Depois, contrastando essa electrónica com um octeto de cordas islandês, mais raivoso do que açucarado, que naquela ilha inóspita nada é doce e melífluo. Por fim, cantando com aquela voz inexplicável, feita de gelo e de magma. A essa base nuclear – beats, cordas e voz – são adicionados temperos pagãos, a brutalidade da natureza irradiando uma estranha luz, enlevando-nos no seu mistério.
A mistura de electrónica com cordas vai ao encontro da Islândia moderna, onde a rude natureza e as tecnologias de ponta coexistem com naturalidade. A ideia não é tanto contrastar o orgânico e o sintético, explorando a violência estética que daí poderia decorrer, mas mais entrelaçá-los no mesmo tecido, dando-nos uma estranha sensação de unidade.
Se são estes os traços gerais Homogenic não comete a vulgaridade de ficar preso a um conceito. Veja-se “Hunter”, que em vez de versar sobre a sua saudosa Islândia, homenageia o retiro espanhol onde o disco foi gravado, pedindo emprestado o ritmo do Bolero de Ravel. Ou “Alarm Call”, mais “popalhudo”, que não destoaria nos discos anteriores. Ou ainda “Pluto”, com pesadas e frenéticas batidas techno mais anglófilas do que islandesas, e uma furiosa electricidade que nada tem a ver com o tom plácido, quase místico, que domina o disco.
Mais tarde, Björk faria muitos e bons discos mas a proporção exacta entre arrojo experimental e canções memoráveis que define Homogenic nunca mais foi inteiramente repetida. Um vulcão derramando fogo e pedra sobre o alvíssimo gelo da Islândia.