Estivemos na segunda noite do Tivoli, com um Palma em grande forma.
Jorge Palma anda desde a Primavera a calcorrear o país, parece que tem bicho carpinteiro. O pretexto foi a apresentação do novo disco, Vida, mas nem era preciso, a gente ia lá na mesma. Calhou agora a digressão chegar à capital do império. Não há fome que não dê em fartura, foram logo dois concertos seguidos, quinta e sexta no Tivoli. Fomos à segunda noite e não nos arrependemos.
Palma doseou bem o alinhamento: por cada canção do novo álbum, havia duas da velha guarda. A malta vibrou mais com os clássicos, cambada de nostálgicos incorrigíveis, que as fresquinhas estavam também catitas. O travo dominante foi um rock’n’roll musculado: Vidal cheio de bazófia na guitarra, Joca a escaqueirar a bateria toda, Lucas no baixo endiabrado, Vicente Palma nas teclas, que quem sai aos seus não degenera. Mas também houve momentos intimistas – não há luz sem sombra, não há sombra sem luz. O acordeão de Gabriel Gomes e o trompete de Tomás Pimentel só subiam ao palco quando lhes apetecia, gente preguiçosa, cruz credo…
Palma começou à guitarra mas escapuliu-se para o seu piano logo que pôde, já com tremores e suores frios. Bem disposto, ia conversando com a gente, sempre tu cá, tu lá, como sempre nos acostumou. Em “Estroina” tentou enganar-nos, ‘ah e tal, baseei-me em personagens que fui conhecendo’, até que acabou por confessar o que sempre soubemos – o fundo autobiográfico. ‘Ainda não consegui deixar de fumar’, desabafou apropriadamente em “Dá-me Lume”. Em “Canção de Vida” – do novo disco mas um clássico instantâneo – contou-nos o encontro em casa do Carlos do Carmo, ‘só bebemos chá’, e nós sorrindo com a ironia malandra…
Um dos momentos mais mágicos da noite aconteceu n”A Canção de Lisboa”, só Palma ao piano e Gabriel ao acordeão (com salpicos de tango à Piazzolla), numa angústia funda servida com superior elegância. Aproveitando a deixa introspectiva, Jorge tocou sozinho ao piano nos três temas seguintes. Logo que se ouviram as primeiras notas da “Estrela do Mar” – aqueles arpejos ondulantes à Debussy que até arrepiam -, a malta foi ao rubro, uma das canções predilectas dos fãs.
Pouco depois, a banda voltou ao palco, rock’n’rollando outra vez a questão. “Deixa-me Rir” e “Frágil” – a última funky até dizer chega, com uma guitarra wah-wah à Curtis Mayfield – provocaram furor na sala, o pessoal parecia ensandecido. “Portugal, Portugal” apresentou-se ainda mais roqueira, num piscar de olhos à versão do Palma’s Gang.
Depois de três canções tão frenéticas, Palma abandonou o palco – já tem 73 anos, coitadinho. Quando regressou, foi em modo mais sereno, para lavar os decibéis dos ouvidos. Em “3 Palmas na Mão” estavam os três Palmas à viola e na voz, que o caçula Francisco foi também dar uma perninha (a ternura familiar cai sempre bem, é como os gatinhos no Facebook). Seguiu-se a incontornável “Encosta-te a Mim”, dividindo as reacções: os filisteus que a conheceram na novela estavam em êxtase, filmando tudo no telemóvel para lives no Instagram; os snobes que não querem que a mulher-a-dias ouça a mesma música do que eles franziram o sobrolho (claro que secretamente estavam a gostar mas não podiam confundir-se com a plebe).
Tudo acabou com “A Gente Vai Continuar” e aí o dique acabou por rebentar: todos em pé a trauteá-la em uníssono e muitas lágrimas traiçoeiras. É uma canção que nos diz muito a nós, palmianos confessos. Todos nós já estivemos na merda, e aquela canção nunca se esqueceu da gente, levantando-nos sempre que era preciso. É essa a grandeza da música de Jorge Palma, ser inseparável das nossas vidas, uma teia de cumplicidades que é tecida entre o artista e os seus devotos. Por momentos estávamos todos unidos em êxtase, qual missa da IURD para gente letrada. Nada mau para um ateu empedernido como o Jorge, o nosso bom fora-da-lei…
Alinhamento
- Vida
- Jeremias o Fora-da-Lei
- Cara de Anjo Mau
- Dormias tão Sossegada
- Plantas na Lua
- Estroina
- Dá-me Lume
- Uma Estação no Inferno
- Só
- Canção de Lisboa
- Bairro do Amor
- Estrela do Mar
- Canção de Vida
- Uma Espécie de Altar
- Deixa-me Rir
- Frágil
- Portugal, Portugal
— Encore —
- 3 Palmas na Mão
- Encosta-te a Mim
- A Gente Vai Continuar
Fotografias: Rui Gato