Um dos discos mais interessantes de James Brown é a banda-sonora do filme blaxploitation Black Caesar. Uma mistura inesperada de melodramatismo com leveza brincalhona.
A primeira metade da década de 70 deu ao mundo os chamados filmes blaxploitation, quando a indústria descobriu que podia fazer dinheiro com um cinema orgulhosamente negro. Estes filmes, hoje deliciosamente datados, têm um ingrediente à prova da corrosão do tempo: as suas incríveis bandas-sonoras, escritas por alguns dos maiores artistas negros da sua época. Isaac Hayes deu o pontapé de saída, com o seminal Shaft (1971), Curtis Mayfield cobriu a parada com Super Fly (1972), e James Brown não deixa descer a fasquia com Black Caesar (1973). Que sequência, camandro!
James Brown esteve envolvido em duas revoluções da música negra americana: primeiro na entrada para os anos 60, ajudando na criação da música soul; depois, na entrada para a década seguinte, inventando o depurado e africaníssimo funk. Ora Black Caesar ilustra bem esta sua segunda fase, onde a melodia e a harmonia são subjugadas em nome de sua majestade o ritmo – o déspota groove tudo governando, tirânico (até a voz e instrumentos melódicos como a guitarra são deliciosamente percussivos). Que Brown aproveite bem os seus últimos anos de ouro, antes da febre do disco arruinar a popularidade do seu funk (a monótona batida quatro no chão do disco – tum!, tum!, tum!, tum! – é a antítese absoluta da síncope louca que encontramos em Black Caesar).
As críticas à época não foram especialmente favoráveis, mas a frieza da distância permite-nos hoje ajuizar que Black Caesar é um dos exemplos mais perfeitos da sua estética funk. É verdade que as canções propriamente ditas são poucas, havendo muitas “brincadeiras” instrumentais, mas as primeiras são tão arrebatadoras, e as segundas tão divertidas e cinemáticas, que o conjunto se torna irresistível. Sem a bazófia malandra, Harlem style, destes interlúdios – pausas kit kat no melodramatismo das “canções” -, Black Caesar não teria o mesmo encanto.
Como o próprio nome do disco o sugere, a música de Black Caesar é negríssima, sem quaisquer concessões aos ouvidos brancos de então. Negra na voz rouca e quente e granulosa. Negra nos gritinhos e gemidos à Little Richard, sensuais, roçando o obsceno. Negra no entornar da alma toda cá para fora, em estremecentes erupções. Negra nos ritmos frenéticos, endiabrados, contagiantes.
Brian Eno disse uma vez que a década de 70 foi o berço de três pulsares mágicos: o motorik dos Neu!, o afrobeat de Kuti e o funk de Brown. O frenesim polirrítmico de Black Caesar revela bem a grandeza deste último. Entrevados de todo o mundo, uni-vos à volta do seu groove. E depois levantai-vos…
Muito obrigado!
Um show de escrita,muito bom!