Sgt. Pepper foi o auge da excentricidade dos Beatles. Em pleno Verão do Amor de 1967, a criatividade da banda de Liverpool levou-os mais longe do que eles próprios, marcando a história da música com um dos melhores e mais complexos álbuns de sempre.
Em contexto bélico, a melhor resposta é o amor. No Verão de 67, com o sangue do Vietname a derramar por todo Mundo, milhares e milhares de pessoas foram atraídas para São Francisco, cidade em que se concentrou o movimento de contra-cultura hippie da nova geração underground, que ali discutia novos valores sociais e políticos, entre festivais e outros eventos onde a música era o elo de ligação. O slogan comummente associado era de sexo, drogas e rock’n’roll, mas na realidade falava-se de amor livre, consciencialização e re-descoberta de valores. Pensava-se, discutia-se e criava-se. Muito provavelmente o álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band não existiria fora deste contexto; neste boom cultural, tanto foram os Beatles influenciados pelo movimento como o inverso. E se por um lado em “All You Need Is Love”, editado em single um mês depois de Pepper, John Lennon compõe um hino ao amor – mal-interpretado por muitos e criticado por outros tantos – Sgt Pepper’s assume-se desde esse Verão do Amor de 67 como um marco musical daquele contexto de mudança.
Numa época em que tantos procuravam inovar no género e na produção, os Beatles perceberam que podiam fazer melhor e subiram a fasquia: inovaram nos diferentes instrumentos que compulsivamente procuravam, nos músicos que convidavam e na dinâmica de banda (todos tocavam tudo, mas o Ringo recusava-se a sair da bateria). Deixaram-se de baladas e substituíram os singles “catchy” de discos anteriores por temas meticulosamente estruturados e idealizados, onde se atreviam até a juntar, na mesma composição, instrumentos ocidentais com indianos. Partindo de sonhos, lugares, desenhos, anúncios ou artigos de jornais, dirigiam-se ao seu produtor George Martin, para juntos concretizarem ideias mirabolantes em cenários possíveis. “A Day In The Life”, última faixa do álbum, é um dos melhores exemplos disso. De uma leitura do Daily Mail, Lennon construiu o primeiro capítulo da música, partindo de duas histórias diferentes: o suicídio do herdeiro Guiness e o trágico acidente de carro que vitimou Tara Browne, um socialite inglês. McCartney, por sua vez, tinha criado uma canção completamente diferente. Sem nunca abrandar o ritmo, juntaram as duas partes, mas faltava algo grandioso a unir as duas pontas. No espaço vazio que as ligava, surge então um climax orquestral de 24 compassos. Porque não? Os Beatles eram a banda mais popular da altura, tinham acabado de deixar os palcos e tinham ao seu dispor todos os recursos (ainda limitados) da altura, num dos melhores estúdios ingleses.
Cada época tem uma sonoridade característica; naquela era de paz, amor e música estavam agora a brotar os primeiros frutos do psicadelismo. “Strawberry Fields Forever” foi o primeiro a ser colhido pelos Beatles. Pela mão de Lennon – a cumprir a tradição (inevitável) de trazer a primeira canção para o álbum – o tema acabou por definir o rumo de Sgt. Pepper, mesmo tendo ficado fora do alinhamento por impaciência da editora EMI, que exigiu um single de antecipação, com “Penny Lane” no lado B. Apesar do cunho alucinogénico da música, esta é uma referência a uma memória nostálgica de infância que nada tem a ver com esse universo. Strawberry Field era um lugar nos subúrbios de Liverpool onde John e Paul costumavam brincar quando eram miúdos. Era um sítio mágico que John quis que pudesse ser mágico para toda a gente. Para isso acontecer, os quatro tiveram de unir esforços: McCartney tocou mellotron (de Lennon) para a característica introdução, Harrison por sua vez adoptou a técnica de slide na guitarra eléctrica (um dos pioneiros em Inglaterra) e inseriu ainda o soberbo instrumento indiano svarmandal, enquanto Ringo se entreteve a cobrir a sua bateria até atingir a sonoridade abafada pretendida. Mas entre os instrumentos usados contam-se ainda piano, violoncelo e trompete. Cinco semanas e 45 horas de gravações depois, a música simples e doce na guitarra acústica que John construíra tinha sido transformada num tema envolvente e sonhador, que se definiu como um ponto de viragem na história dos Beatles.
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band é a banda fictícia que McCartney imaginou para substituir o grupo na estrada. Seria então o álbum – ou a banda homónima – a seguir em digressão pelo Mundo em seu lugar. Mas como o disco, também a capa teria de ser grandiosa. Nela surge o quarteto na pele da banda fictícia, lado a lado com os “verdadeiros” Beatles, estes por sua vez representados pelas suas estátuas de cera que o museu Madame Tussauds cedeu à última da hora para as filmagens. Em seu redor, um mar de pessoas, num jogo de corte e costura que até hoje muitos tentam descodificar. Existem alguns manequins e pin-ups, mas a maior parte são heróis escolhidos pela banda; tinham sido pedidos cerca de 70, mas os quatro juntos não conseguiram nomear mais do que vinte figuras (nenhuma delas mulher), e algumas escolhas mais polémicas como Jesus e Hitler (pedidos por Lennon), acabaram por não entrar na capa para evitar mais burburinhos na imprensa. O cenário, que hoje nos parece tão fácil de conseguir, foi construído com colagens e modelos de cartão e o canteiro de flores foi escrupulosamente cortado para ali figurar o nome da banda. Um amontoado de detalhes excêntricos que contribuiu para a misticidade do próprio álbum.
Em todos os discos uma das músicas era dedicada a Ringo. Neste foi “ With A Little Help From My Friends”, onde o baterista acabou por sentir as dificuldades sobre que fala no tema composto por McCartney. Prestes a desistir de atingir uma das notas, quase derrotado pelas suas inseguranças com a voz, foi incentivado pelos seus amigos a insistir, e acabou por ir para casa mais tarde com o sentimento de objectivo cumprido. De facto, uma das razões para o sucesso dos Beatles como banda foi o facto de serem extremamente unidos. Cresceram juntos como pessoas, mas principalmente como músicos. Lennon e McCartney mantinham o ritmo de criatividade a mil, num clima de incessante competitividade amigável, mas a procura e experimentação passava por todos: Harrison foi à Índia para aprender a tocar com Ravi Shankar, o deus da sitar, e Ringo teve de explorar o seu lado percussionista, tocando bongos e maracas. Tudo era explorado ao máximo das possibilidades, das novidades. E numa altura em que se produzia com apenas 4 pistas, o uso de tantos instrumentos é ainda um factor mais arrebatador. Em “Lucy In The Sky With Diamonds”, por exemplo, toca-se piano, mellotron, cravo, guitarra, guitarra eléctrica, sitar, baixo (McCartney esmerou-se), bateria, marcas, gongo, pandeiro, carrilhão e congas. Uma harmoniosa mistela de instrumentos que confere ao tema aquela característica ambiência psicadélica, capaz de nos catapultar para o centro da nossa imaginação. O nome da música e a própria sonoridade apontam para uma referência a LSD, mas apesar de ter sido uma droga experimentada pelos Beatles e certamente influente de alguma forma na sonoridade do disco, “Lucy In The Sky With Diamonds” foi sim o nome que o filho de Lennon deu ao seu criativo desenho, que acabou por instantaneamente inspirar o pai. Seja qual for a versão mais fiel da história, tanto o tema como o álbum que lhe deu vida tiveram um importante papel no Verão do Amor de 67 e na era psicadélica que então começava a ganhar corpo. Um mês depois iria ser editado The Piper At The Gates Of Dawn, primeiro disco dos Pink Floyd. Estava tudo pronto para uma das melhores épocas da história da música.