Canção do dia

“Tiro ao Álvaro” – Elis Regina & Adoniran Barbosa

“De tanto levar…”, começa a lamentar a voz rouca e gasta de Adoniran Barbosa. Os instrumentos engolem a ideia e Elis Regina – indiscutivelmente uma das vozes mais belas com o qual contaram o jazz e a bossa nova brasileiros nas décadas de sessenta, setenta e oitenta – chilreia como um pássaro tropical, completando a infelicidade amorosa nascida da caneta de Barbosa, “frechada do teu olhar, meu peito até, parece sabe o quê?” As pausas bem-dispostas animam o povo e fazem crescer a antecipação para saber em que estado a lança do mal-amado deixou o coração do nosso protagonista. “Tábua, de tiro ao Álvaro”, lamenta Elis, mas com toda a disposição que já nos habituou em interpretações anteriores – quase conseguimos ver uma fila de dentes branquinhos a sorrir sempre que abre a boca para sair aquela voz tão cheia de força e ao mesmo tempo tão pouco esforçada que nos surpreende. Tiro ao Álvaro?

A confusão não dura muito. O balançar da melodia apanha-nos de surpresa, rasga-nos um sorriso dos lábios, num dia bom talvez até nos faça dançar. Tanto que abraçamos todo o nonsense da letra, abraçamos esta irresistível alegria em estar triste de amores, que a bossa nova planta no nosso coração como uma árvore.

A gravação não acaba antes de um Barbosa acanhado e tímido se chegar ao microfone e perguntar com muito cuidado, como quem não quer ser ouvido: “saiu bem”? E hoje, cinquenta e cinco anos depois, respondemos: sim, Barbosa, saiu muito bem.

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