O décimo disco de Aretha Franklin, I Never Liked a Man Like I Love You, marca o início dos seus anos de ouro. “Respect” é a sua jóia da coroa mas nenhuma das outras dez canções a envergonham. Um clássico absoluto da chamada southern soul.
Pode alguém ser quem não é? Os parvalhões da Columbia Records acharam que sim, impondo a Aretha Franklin um estilo que não era o seu: jazzístico, polido, flácido. Resultado: seis anos e nove álbuns desperdiçando o seu absurdo talento. Até que em ’66 a Atlantic Records a resgata da irrelevância. Mérito do produtor Jerry Wexler, que, conhecedor do rhythm & blues como poucos (foi ele que cunhou o termo e tudo), logo percebeu de onde Aretha provinha: do calor arrebatado do gospel.
Wexler já antes “descobrira” Ray Charles, um dos ilustres fundadores da soul (o gospel abandonando a Igreja, abraçando o “pecado” do amor terreno). Era esse também o caminho destinado à voz de Aretha, o das raízes fundas na América negra sulista – chama, grão, pó, groove. Franklin nascera em Memphis, e, apesar de ter crescido na cosmopolita Detroit, sempre guardou a febre do Tennessee no peito. Wexler nem precisou de fazer grande coisa: foi só dar espaço para essa brasa arder. E assim começou a nascer o disco que finalmente a catapultou para o sucesso e aclamação crítica: I Never Loved a Man Like I Love You, uma das rodelas mais emblemáticas do mágico ano de ’67.
Para que o sul profundo melhor se entranhasse começaram a gravar no Alabama. Com uma house band branca na pele mas negríssima no groove. Aretha foi dando o tom que queria imprimir ao piano, no seu estilo muito percussivo e autodidacta, um prolongamento do pulsar do corpo. A interpretação vocal está cheia de nuances, destilando primeiro rancor contra o bandalho que a trata mal, fingindo-se forte, para logo baixar a guarda, com desejo e vulnerabilidade na voz. E assim se fez a canção-título, e primeiro single, subindo ao nono lugar da tabela de vendas, finalmente um pouco do tão aguardado sucesso.
Acontece que o meliante do marido de Aretha, já bebido, armou uma cena de ciúmes com o trompetista, e há quem diga que houve tiros e tudo. De maneira que as gravações no Alabama tiveram que ser abruptamente interrompidas. As demais sessões foram gravadas já em Nova-Iorque, mas com os mesmos músicos de excepção, os brancos mais negros da América.
Foi já aí que surgiu a canção-assinatura de Franklin, “Respect”, que chegou ao topo da tabela de vendas, e que ainda hoje rebenta qualquer pista de dança que se preze. O original é de Otis Redding, com uma letra chauvinista até à medula: um homem que chega a casa, cansado do trabalho, trazendo o sustento, e que só pede um pouco de “respeito”, leia-se “sexo”, que a mulher tem que cumprir agora com as suas “obrigações”. O que Aretha fez, com engenho, foi inverter os papéis, exigindo “respeito” do homem quando ele chega a casa, leia-se “ser tratada como igual e não como fada do lar e mulher-objecto”. Claro que depressa o tema se transformou num hino feminista.
“Respect” é um daqueles raros casos em que a versão é muito superior ao original, e é o próprio Otis que o reconhece: “that little girl stole my song”. O arranjo é muito diferente, com mais groove e intensidade, e com acrescentos novos, como quando explode – naquela voz metálica como ferro incandescente – o icónico soletrar, “r-e-s-p-e-c-t!”, não fora o homem a quem ela se dirige não ter percebido bem a mensagem. As irmãs de Aretha também ajudam à festa, com coros cúmplices de chamada e resposta, bem destacados na mistura (trunfo usado, e bem, em muitas outras canções do disco).
A toada feminista perpassa também por outro grande tema, “Do Right Woman, Do Right Man”, com o seu refrão orelhudo maior do que a vida, alojando-se no cérebro para toda a eternidade.
O blues “Dr. Feelgood”, escrita pela própria Aretha, a meias com o seu marido Ted White, o tal dos maus vinhos, é outro dos momentos altos, uma apologia das virtudes terapêuticas do sexo, com a sua voz gritando e gemendo no final, o êxtase espiritual do gospel agora transformado em êxtase inequivocamente carnal.
É um disco estupidamente coeso, sem passos em falso, acabando em alta, com o hino da emancipação negra, “A Change is Gonna Come”, do grande Sam Cooke, outro dos ídolos de Aretha. Ao contrário do que sucede com “Respect”, não nos atrevemos a dizer que suplanta o original, mas também não seria justo pedir tanto, de tão comovente é a gravação de Sam Cooke. O que já poderemos dizer, à confiança, é que é uma versão muito corajosa, por ousar ser diferente, imprimindo a sua marca inconfundível. Essa foi sempre, aliás, uma prerrogativa do seu génio interpretativo: fazer suas as canções dos outros, moldando-as à sua personalidade fortíssima e apurada sensibilidade. Os grandes intérpretes transcendem a mera interpretação, tornando-se co-autores das obras de outrem. Aretha é sempre ela e mais ninguém.
Obrigado pelo atencioso feedback!
Adoro a voz estralada e ardida da cantora,muito boa a resenha do álbum.