O disco de John Zorn, Naked City, mistura o vanguardismo do free jazz com a violência do grindcore e a acessibilidade da pop, tudo ao molho e fé em Deus. Um jackpot de contradições: difícil e orelhudo, preciso e impaciente, atroz e divertido. Uma absoluta obra-prima.
Quando se pronuncia o nome “John Zorn” vem-nos logo à cabeça um saxofone broca dentária a rasgar-nos os tímpanos. Ora o disco Naked City – ainda assinado como Zorn mas cujo título daria origem, em tomos seguintes, a uma banda em nome próprio – tem esse lado de chinfrineira vanguardista, sim, mas mesclado com muita melodia inesperadamente acessível. “Tudo em todo o lado ao mesmo tempo” é o mantra que define o álbum, tal é a profusão de estilos que abarca – do free jazz ao country, do reggae ao grindcore! -, por vezes, tudo encavalitado na mesma canção.
A maior parte dos temas são originais mas há também revisitações de clássicos da música do cinema e da televisão, desde o tema da série “Batman” dos anos 60 – que abre o disco – até ao famigerado “The James Bond Theme”, assinado por John Barry, passando por uma sequela da Pantera Cor de Rosa, “You Will Be Shot”, de Henry Mancini; três versões deliciosas, com teclas coloridas “tocadas com os cotovelos”, entre o desenho animado e a pastilha elástica de banana da nossa infância.
Ennio Morricone também foi convocado – se não o fosse, até pareceria mal – com uma cover de “The Sicilian Clan”, que é suposto remeter para o folclore italiano mas que mais nos parece um tango à Piazzolla, dolente e exótico como um funeral em Buenos Aires. E, para não acusarem Zorn de uma obsessiva cinefilia, diga-se em sua defesa que uma das versões nada tem a ver com o grande – ou o pequeno – ecrã. Falamos da balada free jazz – contradição nos seus termos? – “Lonely Woman”, do pai fundador Ornette Coleman, talvez superior à original, se nos permitem a blasfémia. Pelo menos é o que sugere a sua linha de baixo, roubada descaradamente a “Pretty Woman” – o Orbinson vai ficar piurso quando descobrir.
Para quem não gosta nem de free jazz nem de metal extremo receberá um brinde quando chegar ao segmento “grind jazz”, mais ou menos a meio do disco. São oito brevíssimas canções – cada uma com apenas alguns segundos – mas que têm a particularidade de juntar a brutalidade do grindcore à Napalm Death com a violência do free jazz à Albert Ayler. Se dúvidas houvesse quanto ao seu grau de barbaridade sónica seriam logo dissipadas quando vos assinalássemos que é o japonês Yamatsuka Eye – vocalista dos infames Boredoms – quem aqui grita desalmadamente. Oito mini-explosões atómicas de degustação gourmet…
O curioso é que toda esta salgalhada aparentemente caótica foi orquestrada com um rigor erudito. Nada é deixado ao acaso, tudo é programado ao milímetro. Essa mistura de precisão matemática com esquizofrenia estilística é o que torna o disco tão engraçado. Os contrastes abruptos mas exactos, como em “N.Y. Flat Top Box” – do country para o “fritanço” grind jazz, outra vez para o country -, roçam o hilariante. Ao contrário de muitos dos seus “colegas” sisudos e pretensiosos, de óculos no fundo do nariz, o vanguardismo de Zorn é leve e bem disposto, transbordante de sentido de humor.
Para quem, como Zorn, não gosta de hierarquias na música – como a que existe entre a alta e a baixa cultura, com a música clássica a desdenhar o jazz, e o jazz a enjeitar a pop -, vai sentir-se em casa em Naked City. Todos os géneros musicais são aqui convocados, todos em pé de igualdade. Não se aconselha a sua audição a quem sofra de elitismo estético, pode não sobreviver ao choque.
Na sua forma de manta de retalhos Naked City é um objecto pós-moderno, no mesmo campeonato de Paul’s Boutique dos Beastie Boys, por exemplo, mas sem o recurso a maquinarias e samples (tudo aqui é 100% orgânico e biológico, já o vimos à venda no Celeiro). Se na entrada para os anos 90 já se sentia no ar esse excesso de velocidade, a omnipresença da internet e das redes sociais nos dias de hoje só adensou a matrix, tornando este disco estranhamente actual. Frenético, impaciente, fragmentado. Tipo o tiktok mas em bom…