“Ziggy goes to America”. Foi assim que o próprio Bowie definiu Aladdin Sane e continuamos a não encontrar melhores palavras para o descrever. “Ziggy” porque permanece a reflexão glam sobre a natureza da fama, encetada no disco anterior; “goes to America” porque as suas canções – escritas nos Estados Unidos durante a tour Ziggy Stardust- mais não são do que vívidos polaroids desse itinerário americano, com coros gospel, harmonias vocais doo-wop e velhos riffs de blues.
Esta americanização do som servia bem a sua secreta ambição: entrar no mercado americano, o único onde se podia ganhar dinheiro a rodos e, my precious, notoriedade. Se o objectivo não foi inteiramente conseguido (décimo-segundo lugar no top ianque de LPs), o disco foi decisivo para desbravar caminho. Dois anos depois, Bowie conquistaria por fim o Novo Mundo com um namoro ainda mais explícito: Young Americans.
Aladdin Sane é também um disco mais cru e roqueiro do que Ziggy Stardust. Em vez da produção polida e barroca do seu irmão-gémeo, com os seus grandiloquentes arranjos orquestrais, Bowie opta agora por riffs simples e sujos, gravados quase ao primeiro take. Encontramos o exemplo mais flagrante desta urgência em “Jean Genie”: o baixo entra demasiado cedo na passagem para o refrão, ficando alguns compassos fora de tom, e David opta por manter o “prego”. Quatro anos depois explodiria o punk. Não há coincidências.
Se Hunky Dory homenageara Dylan e Reed, Aladdin Sane presta agora flagrante tributo aos Stones: “Watch That Man” tresanda a Exile on Main St. por todos os poros; em “Drive-in Saturday” há a line: “When people stared in Jagger’s eyes”; “Let’s Spend the Night Together” é objecto de uma insólita cover. Se a admiração pelos Stones era sincera, o gesto é também interesseiro: a homenagem explícita legitima a assimilação descarada, passo decisivo para os derrubar a seguir. Não nos esqueçamos do contexto à época: após o fim dos Beatles em 1970 – que coincidiu, grosso modo, com o pico de criatividade dos Stones-, a banda de Mick Jagger ascendera por direito próprio ao estatuto de a “melhor do mundo”, e se havia coisa que Bowie cobiçava com todas as suas forças era açambarcar-lhes essa posição, nem que para isso fosse preciso pintar o cabelo de laranja. E, de facto, depressa o ceptro rodou de mãos. Após o Exile on Main St. de 1972, os Stones não mais gravariam um álbum decente, repetindo até à náusea a mesma fórmula gasta e desinspirada. Já Bowie não falhou um único disco até 1980, reinventando-se sempre, mudando a paisagem da pop pelo caminho. Com Jagger e Bowie no mesmo palco, os adolescentes dirigiam agora a sua atenção para o alienígena com um relâmpago na cara. Que não haja dúvidas: os anos 70 foram a década de Bowie. E de mais ninguém.
Aladdin Sane é também o álbum do piano de Mike Garson, talvez o traço que mais o distingue de Ziggy Stardust. Nas canções mais densas do disco, são sempre os dedos mágicos de Garson que levam os temas mais longe. Na faixa-título, que aborda o tema da loucura, há um memorável solo de piano avant-garde, desenvolvendo maravilhosamente o travo psicótico já contido nas palavras de Bowie. Em “Time”, tema sombrio sobre a passagem inexorável do tempo, o piano à Kurt Weill transporta-nos para os decadentes cabarets de Berlim, cidade que em breve ocuparia um lugar central na sua obra.
E que retrato Aladdin Sane nos devolve então da fama e do sucesso? A resposta não é fácil pois as aparências enganam, e nada é mais feito de aparências do que o ilusório mundo do showbiz. Estamos porém inclinados em propor que a elegância cintilante que brilha à superfície de todo o disco esconde na verdade muita amargura subterrânea. São muitos os exemplos: o actor de Hollywood de “Cracked Actor”, velho e decadente, procurando a glória há muito perdida no corpo transaccionável de um gigolo; a nossa paixão obsessiva pela glamorosa “Lady Grinning Soul”, a quem nos entregamos de cabeça mesmo sabendo que ela nos irá usar e deitar fora. Aladdin Sane é assim, todo ele feito sob o signo da contradição: lágrimas e linhas de coca, fama e solidão, morte e lantejoulas, Bowie amando e odiando ao mesmo tempo o sucesso, a América, ele próprio.
Hunky Dory, Ziggy Stardust, Aladdin Sane: três álbuns seguidos, três álbuns perfeitos, três álbuns gravados com uma das bandas mais inventivas da história do rock. No auge do seu sucesso, Bowie decide terminar com os Spiders From Mars. Das suas cinzas tudo renascerá outra vez.