Após a turbulência das gravações de Get Back/Let It Be, os Beatles voltam aos seus estúdios preferidos para gravar aquele que seria o seu último disco de originais. Abbey Road é, certamente, o melhor último disco de qualquer banda. A proeza só poderia estar a cabo dos quatro fantásticos de Liverpool.
O ano era o de 1969. O último da década que marcou o mundo nas mais variadas vertentes, e, claro está, na música também. E de que maneira. E quem esteve a pautar o início e o inevitável fim dos anos 60 foram os quatro rapazes mais famosos de Liverpool, de seus nomes John, Paul, George e Ringo.
Os últimos dois anos não tinham sido fáceis para os Beatles. Fama, egos, mulheres, drogas, meditação, picardias e afins deixaram os quatro, outrora grandes companheiros, à beira de um ataque de nervos. A morte de Brian Epstein em 1967, após Sgt. Pepper ,deixou a banda à deriva. Enquanto os outros não sabiam ainda bem lidar com o assunto, já Paul McCartney tinha delineado um novo disco, com direito a filme e tudo. Magical Mystery Tour foi o início do fim. Começaram as feiras de vaidade, as disputas de poder, o “estás a querer mandar mais do que eu”. Mas, tal como num divórcio, isto eram apenas os pequenos arrufos de casal. “A coisa está controlada e passa”. Nada mais errado.
Com o passar de 1967, também o efeito LSD passou e, tal como muitas outras bandas, os Beatles entraram num som mais pesado e negro e, sobretudo, individualista. Os membros da banda serviam praticamente apenas como músicos de sessão para os outros. Veio o Álbum Branco, Yellow Submarine e… Let It Be (projecto que começou como Get Back, enfiado na prateleira, sendo apenas lançado um ano depois das suas gravações). A insistência de Paul McCartney em levar a banda para a frente foi demasiada e tinha de rebentar. Gravar um ou dois discos por ano com câmaras à perna em pleno estúdio, ainda por cima não sendo em Abbey Road (um porto de abrigo) fez implodir a banda e até mesmo amizades duradouras.
Quando todos pensariam que as gravações do que eventualmente seria denominado Let It Be seria o fim da banda, eis que George Martin recebe uma chamada de Paul (sempre ele) assegurando-lhe que todos estavam dispostos a reunir-se para um último disco (não assumido). “Até o John?”, perguntava Martin, bastante surpreso. “Sim, até o John”, reafirmava Paul.
George Martin voltaria aos comandos do estúdio após o desvio de Let It Be e a banda regressava a Abbey Road. Como se pode constatar pela audição, Abbey Road (o disco) é um portento. A vibração sentida é completamente diferente do disco anterior (que seria apenas editado em 1970). Mesmo com todas as zangas entre banda (George teve uma pega com Paul em frente às câmaras), todos os elementos foram capazes de discernir o que foram os Beatles e o que ainda representavam, tanto a nível de imagem como de som, e se este fosse realmente o seu último disco (nunca assumido), então que acabassem em estilo e com a qualidade que os fãs e, convenhamos, a própria banda mereciam.
Apesar das sessões para este disco terem começado apenas três (!) semanas após o fim drástico de Get Back (mais tarde editado como Let It Be e produzido por Phil Spector), estas tiveram um interregno grande devido às obrigações de Ringo Starr com filmagens para The Magic Christian, ao lado de grandes nomes como Peter Sellers, Raquel Welch, John Cleese, entre outros. Entre uma sessão aqui e outra ali, só a partir de Julho é que a banda entrou no caminho certo para a gravação de Abbey Road. E que bem que fez esta paragem! Deu tempo à banda para acalmar ânimos, sarar feridas e pensar em novas músicas. A tudo isto juntou-se o facto do Verão ter aparecido em plena Londres, o que aumenta exponencialmente o ânimo das gentes da Europa do Norte. O resultado destas condicionantes é bem visível ao longo do disco, especialmente na segunda parte (Lado B, no já não tão velhinho vinil).

Abbey Road não é um disco totalmente de regresso às origens, como pretendia George Martin, pois este queria que os Beatles voltassem a gravar um disco como a banda fazia pré-Álbum Branco – todos juntos na elaboração das músicas – ora, isso em 1969 e depois de tudo o que se passou, seria utopia. Não obstante tudo isso, a produção de Abbey Road, a introdução de novos instrumentos, vide sintetizador moog em “I Want You (She’s So Heavy)” e “Here Comes The Sun” fez com que houvesse um boost extra para a composição do disco. Também Billy Preston voltou a servir de emoliente, evitando tensões na sala, repetindo o “trabalho” feito nas sessões de Get Back.
O disco estava pensado para agradar tanto a Lennon como a McCartney. O Lado A, iniciado com “Come Together” e finalizado com “I Want You (She’s So Heavy)”, é o Lado de John. Tudo faixas individuais e sem conexão entre elas. Já o Lado B, que começa com “Here Comes The Sun” e termina em “The End”, com todos aqueles medleys deliciosos pelo meio, é assim devido à insistência de Paul. Tanto este como John tinham algumas músicas não acabadas da fase que passaram na Índia, que fizeram parte do mesmo repertório de canções que acabariam por entrar no Álbum Branco. Um pouco de corte e costura e voilá. Estava criado um dos melhores momentos encontrado em discos dos Beatles.
Abbey Road tem de tudo, desde as canções de amor às lengalengas infantis, passando pelo rock progressivo, até aos medleys. É um disco adulto sem esquecer as melodias que sempre pautaram o som da banda. É, também, um disco onde voltamos a ter músicas de todos os elementos da banda, onde até aparecem solos de guitarra e bateria, coisa inaudita em discos dos quatro de Liverpool.
O lado A do famoso disco da passadeira começa com “Come Together”, uma música inspirada em ‘You Can’t Catch Me’, de Chuck Berry, que acabaria por valer um processo por parte deste, alegando plágio e que acabaria por se resolver da melhor maneira possível: Lennon gravou canções de Chuck Berry nos seus discos a solo. “Come Together”, pensada para ser uma canção de apoio a Timothy Leary na corrida com Ronald Reagan a governador da Califórnia (intenção não materializada, visto Leary ter sido detido por posse de Marijuana), vai realmente buscar bocados à canção de Chuck Berry, no entanto, onde a última é totalmente rock n’ roll, a primeira é mais crua, directa, de luxúria e revela uma banda completamente confiante em si própria, com um som totalmente característico do fim dos anos 60, mais Altamont do que Woodstock.
Logo a seguir surge-nos, provavelmente, a música mais bonita de sempre de George Harrison, lutando taco a taco com o resto do repertório dos Beatles. “Something”, tida para muitos como uma canção de amor dedicada à sua mulher da altura, Patti Boyd, é, assumida pelo próprio, George idealizando ser Ray Charles. “Something”, erradamente referida por Frank Sinatra, como a melhor música de Lennon e McCartney, foi o primeiro, e único, lado A lançado pelos Beatles com um original de George Harrison. A canção, uma das mais conhecidas e alvo de covers por inúmeros artistas, demonstrava que George estava no seu período mais alto de maturação, e que já era mais do que tempo de ter maior participação criativa nos Beatles.
À terceira música, finalmente, chega Paul McCartney, apesar deste ter tido uma grande prestação na guitarra baixo na canção anterior. E com Macca chega também o lado mais infantil da banda, apesar de, lá no fundo, “Maxwell’s Silver Hammer” ser uma história negra. Reza a lenda de que foram precisos mais de 20 takes e demasiadas horas em estúdio para gravar a versão final da música, e que até o próprio criador já estava farto da própria composição. Segundo Geoff Emerick, lendário engenheiro de estúdio da banda, Lennon referiu-se a “Maxwell’s Silver Hammer” como “mais uma das músicas de avozinha do Paul” e abandonou as sessões de gravação, passando essas duas semanas com Yoko Ono. Apesar destas complicações, “Maxwell’s Silver Hammer” é uma canção divertida com um toque negro e algo inusual nas letras de Paul. Ela fala dum estudante, Maxwell Edison, que vai cometendo crimes com o seu martelo cinzento. As letras contrastam com o tom mais pueril da melodia.
No entanto, logo de seguida, Paul redime-se do momento mais aligeirado com uma das suas melhores (se não mesmo a melhor) performances vocais. “Oh Darling” vê Paul chegar bem lá acima e bem lá abaixo, confirmando, se dúvidas houvesse, o músico canhoto como o melhor vocalista da banda. Lennon ainda tentou, sem sucesso, que fosse ele próprio a cantar, pois via a canção como mais ao seu jeito. No entanto, “Oh Darling” não precisa de mais explicações. É um portento. Ponham-na a tocar, sff.
Um ano após “Don’t Get Me By”, Ringo Starr teve direito a mais uma composição da sua autoria. “Octopus’s Garden” é inspirada numa viagem de Ringo à Sardenha no iate de Peter Sellers, durante o período que o baterista abandonou a banda, aquando das sessões do Álbum Branco. A composição, que teve uma grande ajuda de Harrison, é uma historieta infantil, meio “Yellow Submarine”, mas com uma melodia divertida e vibrante. Totalmente de acordo com o período estival.

Quem não estava muito virado para ambientes estivais era Lennon, que aparece pela segunda vez no disco com a sua cáustica “I Want You (She’s So Heavy)”. Escrita no início de 1969, a canção tem uma letra bastante explícita. Lennon deseja Yoko e deseja-a tão fortemente que o está a deixar louco. E não era exagero. A simplicidade da música fica-se por aí. Esta é, ao lado de “I’ve Got a A Feeling” (menos) e “Helter Skelter” (mais), a canção que mais transportou a banda para um outro género musical. Pela primeira vez, os Beatles metem um pé no rock progressivo, embora a estrutura da canção seja mais à maneira dos blues. A intensidade do baixo, a voz esganiçada de Lennon, as teclas de Billy Preston e os sintetizadores a darem um tom mais sinistro, fazem de “She’s So Heavy” uma das canções mais interessantes de toda a colecção dos Beatles. Do alto dos seus quase oito minutos a música vai correndo e correndo até
LADO B: Se o leitor achou que o parágrafo anterior estava incompleto e não houve edição por parte da equipa do Altamont, então acabou de ter a mesma sensação que os ouvintes do vinil tiveram pela primeira vez em 1969. O lado A de Abbey Road acabava abruptamente como se alguém tivesse desligado a aparelhagem. Já em 1967, os Beatles tinham inovado ao colocarem um segmento de cacofonia sonora ao acabar Sgt Peppers. Foi uma perfeita opção para acabar a primeira parte de Abbey Road e ter um recomeço belo e sereno com “Here Comes The Sun”, umas das obras maiores de George Harrison. Escrita durante uma estadia de George em casa do seu amigo de sempre Eric Clapton, a letra é simples mas deliciosa. Tudo porque George estava no jardim de Clapton e o sol resolveu surgir no meio das nuvens cinzentas, devolvendo o bom astral que o rei celeste sempre traz.
Lennon surge novamente com ‘Because’, música etérea dedicada e inspirada pela sua nova paixão, Yoko Ono. A canção surge após Lennon ouvir Yoko tocar a Sonata ao Luar de Beethoven. Ao inverter os acordes, Lennon criou um som misterioso que George Martin, o produtor e eterno quinto Beatle, encontrou no seu cravo. “Because” tem a particularidade de contar com a harmonia de Paul, George e John juntos e triplicados, num dos momentos mais bonitos de toda a sua discografia, particularmente perceptível na versão despida de instrumentos.
A partir daqui começa o medley que caracterizou o disco. Paul McCartney dá o pontapé de saída com “You Never Give Me Your Money”, canção que é, ela própria, uma espécie de medley, tendo vários segmentos bem diferentes uns dos outros . Começa com Paul ao piano a queixar-se sobre problemas monetários (segundo o próprio, a influência para a letra da música teve um actor principal – Allen Klein – empresário de índole rasteira que os outros três decidiram contratar à revelia de McCartney, que queria o seu sogro para o cargo) e acaba com a banda a cantar uma lengalenga infantil. Ouvem-se os sapos, grilos e sinos e a transição é feita para “Sun King”, composição de Lennon. Uma canção simples mas deliciosa, que, tal como “Because”, contém os três Beatles a cantar em triplicado. Nela, John mistura palavras de várias nacionalidades, incluindo a portuguesa “obrigado”, sem que a letra tenha qualquer significado.
A velocidade do disco aumenta com “Mean Mr Mustard e “Polythene Pam”, composições que Lennon tinha criado na Índia e que passaram a fazer parte deste medley, de cerca de 16 minutos, às quais se cola a “She Came In Through The Bathroom Window”, de Paul, que nos conta a história (verídica) sobre um fã que entrou no edifício dos escritórios dos Beatles por uma pequena janela na casa de banho.
E entramos na recta final de Abbey Road, toda ela dominada por Paul McCartney. “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” são outro medley dentro do medley maior. Este segmento final do disco começa como se fosse uma canção de embalar, influenciada por uma obra do dramaturgo Thomas Dekker, que McCartney encontrara em casa do seu pai. Não sabendo ler pautas clássicas, o Beatle criou a sua própria melodia ao piano. Entrecortada pela bateria de Ringo, “Carry That Weight” entra em força com os quatro Beatles a cantar em uníssono o nome da canção, sendo que, em seguida, após a entoação desse refrão, volta a melodia de “You Never Give Me Your Money”. O medley final termina com “The End”, onde os quatro Beatles contribuem cada um com um solo instrumental. Ringo fez o seu primeiro solo de bateria nos Beatles, ele que sempre afirmou não ser fã do estilo e na canção nota-se a razão. Ringo nunca foi um baterista excepcional ou virtuoso, mas sabia manter o ritmo e sabia exactamente onde tocar e essa era sua maior qualidade. Por sua vez, os solos de guitarra (por ordem: Paul, George e John) são bastante interessantes e são exemplos das suas personalidades e estilos musicais. Enquanto McCartney tem um toque mais leve e simples, Lennon revela a sua aspereza. Já Harrison, no topo do seu jogo enquanto músico, eleva a qualidade com notas agudas. Todo este momento instrumental desagua no verso final da canção, a cósmica “and in the end, the love you take is equal to the love you make”. Uma frase chavão que resume a vida da banda e da década que estava a findar.
Mas esperem, afinal ainda há mais. Quem deixou o vinil a rodar terá a surpresa de ouvir uma faixa escondida (Só na edição da versão CD, em 1987, é que a faixa apareceu como parte integrante do disco). “Her Majesty”, previamente parte do mini-medley “Mean Mr. Mustard/Polytheme Pam/She Came In Through The Bathroom”, foi cortada por ordem de Paul. Não querendo desfazer-se de nada gravado pela banda, e temendo um eventual despedimento, John Kurlander, outro engenheiro sonoro, colou este pedaço após o fim do disco, com o recado para que o produto final não a incluísse. A banda acabaria por ouvir a versão e decidiu lançar assim mesmo, desconstruindo o mito que dizia ter sido Paul a incluir a música à revelia da banda.
E no fim, o que ficou foi a coroação dos quatro de Liverpool como a maior banda da história, o melhor romance do século XX e que, apesar de todas as guerrilhas, lutas de poder e todo o mau ambiente gerado no início do ano de 1969, a banda conseguiu reunir-se para mais um disco e o resultado final foi este grandioso Abbey Road que, curiosamente, teve para se chamar Everest, em homenagem à marca de cigarros que o seu engenheiro de som fumava.
Os Beatles acabariam por entrar na decénio seguinte com Let It Be mas seria o disco da passadeira o seu último projecto, mesmo na recta final da década de 60, na qual a sua marca foi indelével.
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