
Começou ontem a sexta edição do Vodafone Mexefest. Assim, e mais uma vez, o festival em que nos sentimos reis da Avenida, gozando Lisboa em plena Liberdade, trouxe um cartaz bem diversificado, mexeu com a noite da capital em plena black friday e o Altamont lá esteve (como estará hoje também) para vos dar conta do que fomos vendo e ouvindo. No dia inaugural, foi mais ou menos isto o que de mais significativo aconteceu…
Pelas 19h30, a misteriosa Lula Pena desceu as escadarias da Sociedade de Geografia de Lisboa, deslizando descalça no seu longo vestido negro. Quem houvesse ali chegado com uma venda nos olhos, e tentasse interpretar as primeiras notas que ouvia, juraria que estavam ali dois músicos: Lula Pena, cantando e dedilhando a sua guitarra acústica; e um percussionista a acompanhá-la, com os seus ritmos tribais e telúricos. Qual não seria então o seu espanto quando, descoberta a venda, visse Lula sozinha no palco, tamborilando as cordas e a madeira da guitarra como se de um tambor se tratasse. E se o seu estilo percussivo de tocar guitarra é maravilhoso, o mesmo teremos de dizer da sua voz: quente, rouca, com travo a terra e a sangue. Foi neste registo mágico e intimista que começou para nós esta edição do Mexefest. A noite prometia.
Um pouco depois das 21, baixaram-se as luzes do Teatro Tivoli BBVA para que o concerto tivesse lugar. Uma coisa é certa: quem assiste a um show de Bruno Pernadas ganha a ticket to ride, e ontem não houve exceção a essa regra. Uma sala bem composta por gente amiga do som de Pernadas e sua fantástica trupe foi dando ânimo a quem nos dava ânimo em retorno. Uma festa! Das boas! Nove elementos em palco conferiram ao espetáculo um som bem preenchido, detalhado, excepcionalmente urdido. E no meio de tudo, a comandar as tropas alinhadas dos batalhões de guitarras, teclas, baixo, bateria, sopros e vozes em perfeita afinação, capitão Pernadas, saltando entre sons de guitarras e teclados. Alguns temas dos dois trabalhos deste ano (como “Spaceway 70”, por exemplo) misturaram-se com outros do primeiro disco (o maravilhoso “Ahhhhh” fez igualmente parte do alinhamento). Foi um concerto a lembrar épocas distantes, calorosas, em que a geografia sonora do jazz ia, em detalhes preciosos, marcando o ritmo da viagem. Tirado o bilhete, havia que aproveitar. O tempo passou sem se dar por isso. Assim, pelos nossos olhos terá passado o melhor concerto da primeira noite do Vodafone Mexefest. Teve jazz, teve eletrónica, teve pop de excelência, teve rock, até. Por isso, quanto ao que faz Bruno Pernadas, não se iludam, nem se enganem: this is the shit!
Entretanto, do outro lado da avenida, os Fandango faziam o Cinema São Jorge bailar com sua fusão de trance com música popular portuguesa. Saudamos a irreverência dos dois históricos da pop lusófona que integram o projecto: Gabriel Gomes (Sétima Legião, Madredeus) no acordeão; Luís Varatojo (Peste & Sida, A Naifa) na guitarra portuguesa; ambos, na manipulação de texturas sonoras nos respectivos laptops. O que mais nos encantou no som dos Fandango foi a sua síntese de forças contrárias, enxertando, com a maior das naturalidades, o mais contemporâneo e cosmopolita com o mais arcaico e rural. O que o saudoso João Aguardela iria gostar de bailar…
Não queremos deixar de registar o concerto surpresa, de entrada livre, com que que o Vodafone Mexefest resolveu presentear os lisboetas. Foi às 20:45, junto ao Teatro D. Maria II. O show de Jorge Palma levou bastante gente ao Rossio, e foi claramente uma boa antecipação dos seis concertos que o nosso bom trovador irá dar brevemente para assinalar os 25 anos (!!!) do seu clássico absoluto Só. O que por lá se ouviu não foram apenas canções. Foram hinos que todos nós conhecemos há muito e que há muito fazem parte do nosso imaginário sonoro coletivo. Bem hajas, Jorge Palma! Obrigado pela surpresa, Vodafone Mexefest!
Eram cerca das onze da noite quando subimos as Portas de Santo Antão rumo à Casa do Alentejo. Howe Gelb lá nos esperava, sentado ao piano fumarento, enquanto o contrabaixo e a bateria swingavam como se não houvesse amanhã. A primeira parte do concerto aconteceu neste formato de jazz noctívago, e a forma percussiva e desengonçada com que Gelb martelava o piano fez-nos muito lembrar o trôpego Thelonious Monk. Na segunda parte, Howe troca o piano e a melancolia por uma guitarra acústica mais festiva, com o público a reagir bem à mudança de humores. Mas o momento alto do concerto foi quando o velho lobo, regressado ao piano, recordou o grande Leonard Cohen, revisitando a clássica “A Thousand Kisses Deep”.
Depois, por volta das onze e meia da noite, era chegada a hora do concerto da cantora paulistana. E lá fomos nós, andando rua acima, rua abaixo, até ao Cinema São Jorge – Sala Montepio para vermos e ouvirmos Céu. Apesar de ter sempre uma crítica favorável e bastante aceitação por parte do público (estava totalmente cheio o espaço do concerto), a verdade é que Céu não nos parece muito acima de uma pop moderninha com brilho de confettis. Para mais, ficou também a impressão de que o som muito alto e pouco detalhado (estávamos na primeira fila, colados ao palco) não terá ajudado à festa. Visivelmente satisfeita, Céu foi dando o que tinha, misturando temas do recente Tropix com outros de Caravana Sereia Bloom, Vagarosa, recuando mesmo até ao seu trabalho inicial, CéU. A cantora construiu um show de orientação dançante (muitos foram os que não deram descanso às pernas e às ancas o tempo todo, sempre em pleno delírio), mas não levantou voo acima da mediania. Muitas canções parecem iguais umas às outras, o registo rítmico difere pouco, e nem mesmo temas como “Perfume do Invisível”, “Contravento”, “Amor Pixelado”, “Minhas Bics”, “Varanda Suspensa” ou “Malemolência” resgataram o show para melhores e mais altos patamares. Foi pena, uma vez que levávamos algumas boas expectativas na bagagem.
Quando a noite do primeiro dia do Vodafone Mexefest já não tinha mais nada para oferecer, todos os festivaleiros rumaram às Portas de Santo Antão, ao Coliseu dos Recreios, para ver e ouvir Jagwar Ma. Com a sala repleta de gente com vontade de fazer a festa, os australianos lá foram mostrando do que são feitos: de muitas e boas influências de Madchester (o grande movimento alternativo da Inglaterra dos finais dos anos 80 e início dos 90). O seu rock dançante foi revelando aproximações aos Happy Mondays, Inspiral Carpets, New Order, Depeche Mode ou A Guy Called Gerald. Quando os Jagwar Ma se centram mais nas guitarras, tudo parece melhorar e o som que se respira é mais fresco e de melhor qualidade. Quando por momentos as abandonam, o resultado já não parece ser tão interessante. No entanto, foi bom o fim de noite. Por momentos, o nosso Coliseu dos Recreios parecia uma autêntica Haçienda repleta de inúmeros Tony Wilsons de copo de cerveja nas mãos.
Foi assim a primeira noite. A chuva deu-nos tréguas e isso ajudou. Noite serena, sem chuva e sem frio. Daqui a pouco, quando o relógio marcar as seis da tarde, recomeçará a dança. O cartaz do segundo dia é melhor, parece-nos. Essa é a principal razão de estarmos desejosos de regressar à Avenida da Liberdade e arredores, mais daqui a pouco. Até mais logo, então.
Texto: Carlos Vila-Maior Lopes e Ricardo Romano || Fotos: Francisco Pereira e Luís Flôres
Mas sempre “a abrir….”. Maravilha.