A lotação praticamente esgotada fazia prometer uma noite de muita festa e, durante três horas, não houve outra coisa na MEO Arena. Afinal, este foi o regresso dos The Cure a palcos portugueses, quase quatro anos e meio depois do último concerto dos britânicos por terras lusas. Num espetáculo que mostrou um Robert Smith bastante sorridente e mais comunicativo que o costume, a celebração de 37 anos de carreira do grupo não podia ter corrido melhor.
Pouco depois da hora marcada (e antes da banda mais esperada da noite) subiram ao palco os The Twilight Sad. Apesar de serem apenas a primeira parte, os escoceses mostraram estar à altura do desafio, apresentando um conjunto de canções variadas – do post-punk mais agressivo à pop mais barulhenta – que mostrou um grupo que usa as suas influências na lapela: houve My Bloody Valentine, Cocteau Twins, Mogwai e, claro, The Cure. À medida que foram avançando no concerto, o número de gente cativada foi aumentando, tanto que, quando abandonaram o palco, fizeram-no sob uma enorme salva de palmas.
Por esta altura, o palco encheu-se de técnicos que, com minúcia e precisão deixaram tudo pronto para que Robert Smith e companhia deixassem a sua magia fluir sem problemas. O começo da gravação “Tape” foi o primeiro prenúncio de que algo estaria para acontecer; depois, com o apagar de todas as luzes exceto as de palco, veio um aplauso ensurdecedor – então, por fim, lá apareceram os cinco vultos que todos estavam ansiosos por ver: Robert Smith (voz, guitarra), Simon Gallup (baixo), Roger O’Donnell (teclados), Jason Cooper (bateria) e Reeves Gabrels (guitarra). Durante as três horas e meia e 31 músicas que se seguiram todos deram tudo de si e o resultado foi fantástico – uma viagem pela carreira dos The Cure que passou por alguns dos marcos mais importantes e que incluiu o bónus de uma música nova.
Depois de um início morno com “Open” e “All I Want”, foram as energéticas “Push” e “Inbetween Days” que arrancaram os primeiros coros e palmas fervorosas ao público – que só agora estava a aquecer. Contudo, às primeiras notas de “Pictures of You” sentiu-se, pela primeira vez, o poder de histeria que os hinos de amor dos The Cure têm, com guinchos a ecoar por todos os lados e os telemóveis a sair em força dos bolsos. Depois de um aplauso massivo e de um agradecimento por parte de Robert Smith – que, de resto, recebeu sempre estes momentos com um genuíno “Obrigadous” – a festa continuou com “The Hungry Ghost” (das melhores faixas do mais recente 4:13 Dream), e os singles “A Night Like This” e “The Walk”.
A potente e rápida “Primary” foi apresentada em Lisboa numa versão um pouco desacelerada, mas nem por isso menos incrível – isto permitiu que se apreciasse a faixa de uma maneira totalmente nova, dando-se mais atenção, por exemplo, ao trabalho rítmico do baixo. Seguiu-se o momento The Top do concerto: primeiro, com a intensa e pesada “Shake Dog Shake” e depois a inocente e, ao mesmo tempo, estranha “The Caterpillar”. Entre as duas faixas, ouviu-se ainda “The Blood”, invocadora de paisagens andaluzas e antes da qual Robert Smith se referiu ao “sangre de Cristo”. Daqui até ao final desta parte do concerto foi sempre a loucura entre o público. Primeiro, por culpa da belíssima “Lovesong”; depois, “From the Edge of the Deep Green Sea” deixou cabeças a abanar e levou as vozes a fazerem-se ouvir bem alto com um portentoso “put your hand in the sky”. Com a bateria facilmente reconhecível e a guitarra urgente e retorcida, “One Hundred Years” ajudou a adensar o ambiente, tornando-o substancialmente mais sombrio com a crueza e negrume que caracterizam esta música e todo o Pornography. Claro que este efeito foi exacerbado pelas imagens do Holocausto e cenários de guerra/destruição que foram projetadas atrás da banda. Por fim, em “End”, última música de Wish, pôde ouvir-se um solo de guitarra fantástico, que fechou este primeiro ciclo de músicas no concerto.
Ao regressar para o primeiro encore da noite, Robert Smith brincou com o público dizendo “we’ve only got five more minutes”. Logo a seguir anunciou que iriam tocar uma nova música, de nome “Step Into the Light” – e que boa canção, diga-se: lembra os momentos mais geniais de Wish misturados com a sonoridade de The Cure. A reação do público a esta nova faixa não podia ter sido melhor: os aplausos fizeram-se ouvir e bem. Passadas duas belas músicas menos conhecidas – “Want”, de Wild Mood Swings, e “Burn” da banda sonora do filme The Crow – era chegada a altura de visitar Seventeen Seconds. Primeiro, Robert Smith e Jason Cooper puseram tudo a dançar com o riff genial e a batida contida mas pulsante de “Play for Today”, que por momentos nos transportou para uma sala pequena cheia de miúdos a dançar à Ian Curtis, em 1980. De seguida, deu-se o primeiro grande momento da noite: “A Forest”. Embora muitos não tivessem reparado no subtil sintetizador, às primeiras (e inconfundíveis) notas na guitarra a MEO Arena uniu-se para aclamar com guinchos e palmas a incrível música. E o resto foi magia: o público a cantar em uníssono com Robert Smith e a dançar sem parar, protagonizando, por fim, um clap-along extremamente comovedor, pela cumplicidade (só guitarra, baixo e palmas se ouviam) e sincronia que este mostrava com a banda, como se estivessem unidos numa só mente que coordenava tudo com uma precisão inumana. Foi com um estrondoso aplauso que mais uma parte do concerto encontrou o seu término.
Pouco depois, os The Cure voltavam ao palco para nos oferecer “Fascination Street”, uma das suas mais agressivas, atormentadas e brutalmente belas músicas, retirada do clássico Disintegration. Ao vivo, foi isso e tudo mais: a bateria ganhou uma expressão enorme, o portentoso baixo rugia por todos os lados, as guitarras ecoavam pelo ar como gritos de desespero e a voz doente, quase maníaca, de Robert Smith só ajudava a compor a imagem negra que as ondas sonoras pintavam.
Antes de um dos melhores momentos da noite, houve espaço para uma incursão rápida a “Freakshow”, na qual o cantor dançou bastante e trocou a guitarra por um cowbell, coisa de que viria a arrepender-se mais tarde, dizendo a rir: “I can’t do this [tocar o instrumento] and sing”. De seguida, aos primeiros acordes de “Friday I’m In Love” o público perdeu a cabeça de tanta felicidade, começando aos gritos e aplausos, entoando de pulmões cheios um dos hinos dos The Cure, tão alto que pareciam três ou quatro Robert Smith a cantar no palco. Depois da belíssima canção retirada de Wish, não satisfeitos com o efeito de histeria absoluta que tinham causado, seguiu-se outra das mais bonitas músicas de amor de sempre, “Just Like Heaven”, que causou uma reação igual à faixa anterior. Claro que esta linha de canções só podia ter uma continuação: a canção que pôs os The Cure pela primeira vez no foco das atenções do público mais geral, “Boys Don’t Cry”. Quando tal já não se achava possível, o público ultrapassou-se e instaurou na MEO Arena a festa total: não havia ninguém parado, que não cantasse ou dançasse; e no final, o rugido das palmas de certeza que abanou um pouco a estrutura da sala de espetáculos. Findava assim o penúltimo encore da noite.
A abrir a reta final, ouviu-se o último dos grandes singles dos The Cure: “Lullaby”. A história assustadora de um homem-aranha que procura a sua presa, assustada na cama, levou todos, mais uma vez, à loucura em massa. Embora a versão ao vivo perca o elemento do suspiro cantado, ganha com as projeções (uma aranha a fazer a sua teia) e com as teatralizações que Robert Smith vai operando, com vozes diferentes a aparecerem em partes distintas das músicas e aquelas danças que só ele sabe fazer. Depois deste último momento de escuridão, até ao final só houve luz e dança: cada uma à sua maneira, mas “Hot Hot Hot!!!”, “Let’s Go To Bed”, “Close To Me” e “Why Can’t I Be You?” fizeram com que o público se tornasse num gigante aglomerado de pessoas aos pares, ou em grupos, aos pulos e a aplaudir sempre fervorosamente.
E assim passaram, demasiado depressa, três horas de concerto. No final, Robert Smith foi agradecer “pessoalmente” os aplausos, de mão no peito e sorriso na cara (um daqueles sorrisos que só podem espelhar um profundo “obrigado”), passando o mais perto possível de cada setor do público, dentro do permitido pelo palco. Mais uma vez, os The Cure fizeram valer a sua longa experiência em palco (especialmente o cantor/guitarrista) para oferecer a quem foi àquele concerto algo mais que uma incrível aventura sónica: uma sensação de satisfação, enorme felicidade e gratidão, daquelas que poucos concertos deixam na pessoa. Bravo, senhores, bravo. Que venham mais espetáculos assim.
Fotografias gentilmente cedidas por Alexandre Antunes / Everything is New.