
A chuva resolveu marcar presença no segundo e último dia do Vodafone Mexefest. Nós não lhe demos importância. Festa molhada, festa abençoada. O cartaz resultou bem, e o pulo de qualidade em relação à véspera notou-se sem grande esforço. Vários bons momentos, mas sobretudo há que perceber isto: o concerto do ano aterrou em Lisboa na noite de ontem, e foi dado por uma mulher do outro mundo, Elza Soares!
Começámos a festa cedo, pelas seis da tarde, com um dj set descontraído de Tiago Santos, também conhecido por O Mecânico do Amor; e foi amor o que o velho marujo dos Cool Hipnoise nos ofereceu no terraço do Capitólio, o seu amor à música negra americana, emanando das espirais dos seus vinis obscuros de mestres da soul. Até que pelas sete e meia começámos a ouvir rockalhada lá em baixo, porreiro, pá, bastou descer as escadas e a rambóia logo continuou: eram os grandes Zanibar Aliens, fazendo estremecer os bastidores do capitólio com o seu blues rock à Led Zep.
E como temos o dom da ubiquidade, fomos espreitar, ao mesmo tempo, o que Meg Baird trazia para nos sussurrar aos ouvidos em outro lugar da Avenida. Eram segredos antigos, seguramente, vindos do fundo da voz da compositora que já acompanhou alguns dos melhores nomes da folk atual, como Will Oldham, Kurt Vile, Sharon Van Etten ou Steve Gunn. E já que estamos a desfilar nomes que todos conhecemos, juntemos mais alguns a estas linhas: a voz de Meg Baid lembra uma mistura de Sandy Denny com Jessica Pratt, nem sempre por via do timbre agudo, talvez mais pelo encantamento que é capaz de produzir. Foi bom, no entanto, como tantas outras coisas boas que existem na vida, também a artista americana produz, ao fim de algum tempo, uma certa malemolência, sobretudo no que a palavra tem de preguiça e dormência. Tinha chegado a hora de partirmos.
Era só subir a Avenida da Liberdade para irmos ao encontro das Señoritas, das cinzas de A Naifa há pouco nascidas: Mitó na voz e guitarra eléctrica; Sandra Baptista no acordeão, baixo e programações. E o que gostámos da sua pop experimental e irreverente. Se em A Naifa as duas señoritas estiveram sempre na sombra de João Aguardela e Luís Varatojo, agora, no Cinema São Jorge, tivemos o privilégio de as ver bem no centro dos holofotes, partilhando connosco a singularidade do seu universo: ousado e feminino, frágil e forte, carnal e sagrado como um gemido de Maria Madalena…
Depois, atravessámos a Avenida a correr, para não perder pitada da Mallu Magalhães, desta vez sem Banda do Mar e sem a companhia do seu bom barbudo Marcelo. Apenas ela, o seu violão e as suas canções esperavam por nós. A imagem de fundo projetada nas costas de Mallu Magalhães (uma grande cidade de cimento, torres a caminho do céu, provavelmente São Paulo) contrastavam com a delicadeza frágil e macia da cantora e do balanço do seu violão. Perfeito contraste, aliás, entre a rudeza urbana e a beleza da sua figura feminina. O Tivoli estava cheio para a ouvir, por isso não foi de estranhar os enormes aplausos quando a menina de Sampa (mas também já de Lisboa, como ela própria referiu) foi mostrando os seus maiores trunfos, como “Casa Pronta”, “Ô, Ana” ou “Sambinha Bom”. Quanto a Mallu, o que sempre mais nos agrada nela é essa juventude adulta que algumas das suas composições revelam. Agrada-nos a determinação empática de versos como “E se perguntarem por mim, diga que estou ótima!”, chutando para a frente os problemas comuns do dia-a-dia, mandando-os às urtigas sem ponta de hesitação. Na intimidade partilhada da sua voz e do seu violão, foram surgindo canções como “Olha Só, Moreno”, “Chega de Saudade” (à capella, com bonita projeção da sua sombra no fundo do palco), “Janta”, “Cena” (tendo-se soltado, a meio da canção e de forma imprevista, a fita que lhe prendia a guitarra ao corpo, embora Mallu tenha resolvido a percalço sem grande problema), “Seja Como For”, “Mais Ninguém” e “Velha e Louca”. Tudo de forma delicada e bela, com seu risinho nervoso a marcar as pausas entre um tema e o seguinte. Para o fim, o melhor da festa: Mallu cantou a mítica “Baby”, de Caetano Veloso, terminando um show que agradou, e muito, a todos os que a foram ouvir. Um show caprichado, em que Mallu Magalhães passou baton vermelho só para nós. Por instantes, deu-nos vontade de transformar um pouco a letra de “Baby”, e seguir cantando “vivemos na melhor cidade da Europa do sul”.
Depois…, depois chegou até nós uma mulher do fim do mundo! Veio das entranhas dos séculos, veio com o peso sofrido da história do tom da sua pele e da sua gente. Gente do samba, mas do samba que se tornou escuro, fúnebre, avesso aos brilhos postiços da Marquês de Sapucaí. Elza Soares, a Rainha Negra, foi ontem mais uma vez coroada! O concerto a que assistimos e que tem como título o mais recente longa duração da carioca, ficará para a história do Vodafone Mexefest. Mas não só. Ficará também para a história de todo o público presente, e em nada exagero se o considerarmos o concerto do ano de 2016! Como não pensar assim? A força da encenação, das canções, do passado histórico do samba agora transmutado em outra coisa difícil de nomear, o cataclismo sonoro que provoca em nós a voz de Elza, a aspereza da urgência dos temas tratados, os versos “É o navio humano, quente, negreiro do mangue / É o navio humano, quente, guerreiro do mangue” anunciando a batalha a que íamos assistir… No centro do palco, num plano ligeiramente elevado em relação aos músicos que a acompanhavam, Elza estava sentada no seu trono, e dele não saiu durante todo o espetáculo. Nem precisa. É uma estátua viva (literalmente), uma deusa negra (literalmente) que parece chegar até nós vinda dos infernos dos tempos. Mesmo que a ironia dos versos tente disfarçar, Elza veio cheia de uma vida marcada pelo sofrimento que não é apenas o seu, (“Meu choro não é nada além de carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés / A multidão avança como um vendaval / Me joga na avenida que não sei qual é”), mas também o de milhares de brasileiras molestadas (“Cê vai se arrepender de levantar / A mão pra mim”) até aos dias de hoje, em violências que devem ser criminalizadas, até porque a mulher deve “gemer só de prazer”, como bem disse depois do fortíssimo “Pra Fuder”. É difícil e injusto destacar os melhores momentos do show. Foram tantos! Foram todos! Mas “Malandro”, com a presença em palco de Rubi (cantor, ator e músico de Goiânia) merece nota ainda mais especial do que qualquer outra. Com a cabeça ao colo da cantora, Rubi ouvia a voz de Elza que lhe dizia “Malandro / Eu ando querendo falar com você / Você tá sabendo que Zeca morreu / Por causa de brigas que teve com a lei” e nós comovíamo-nos com a encenação e com o padecimento da dor, resignados mas tolerantes, até porque “Ali onde eu chorei / Qualquer um chorava”… Em Elza cabe o mundo inteiro. Na sua voz cabem as vozes das melhores do mundo. Convém não esquecer que foi considerada, em 1999, a voz do milénio pela insuspeita BBC. Bem hajam, Elza Soares e Guilherme Kastrup, o homem por detrás de tudo isto, produtor musical e diretor geral de A Mulher do Fim do Mundo.
O que podemos mais dizer depois de termos assistido a um concerto como este? Mesmo que o Vodafone Mexefest tivesse muitos mais dias de espetáculos para oferecer, já nada mais valeria grandemente a pena. Por onde passa Elza Soares, tudo arrasa. À sua volta haverá sempre terra queimada. Por isso nos desculpem Mayra Andrade, Whitney, TaxiWars, por exemplo, que deram bons concertos, mas nada há a fazer. Elza Soares é incomparavelmente maior. Elza Soares é uma mulher do outro mundo!
Para o próximo ano haverá mais. O Vodafone Mexefest já garantiu há muito o seu espaço no outono lisboeta. Ainda bem que assim é. Ainda bem que assim será. Até novembro de 2017, então.
Texto: Carlos Vila-Maior Lopes e Ricardo Romano || Fotos: Francisco Pereira e Luís Flôres
*Fotos em actualização